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sábado, 22 de outubro de 2011

O Silêncio

    Um homem corre nu e desesperadamente até o fim da floresta. Parado ele observa a montanha que surge diante de seus olhos. Com grande lentidão ele sobe. As rochas o ferem, o cansaço é quase maior que seu medo...e o peito pesa cada vez mais, porém sobe...angustiado, com o coração manchado pela culpa. É difícil compreender o que acontece – e sempre será -, mas a sensação é de algo que desmorona, uma demolição incontrolável de uma estrutura colossal. Insistente ele sobe um pouco mais. Todo seu corpo está enfraquecido, mas com a cabeça baixa ele sobe. Não dá mais! Apoia-se em uma borda da montanha com seus braços fracos e trêmulos e algo em seu coração insiste em doer.
    Eis o primeiro homem. Sentado. Apavorado. Agarrado ás próprias pernas enquanto chora de medo, desespero, culpa. Em meio ao crepúsculo é possível ver e sentir o doce cheiro de uma enorme angústia que paira no ar. Enormes nuvens de fumaça são vistas de longe ali da montanha; ascendem ao céu e fundem-se com ele ofuscando o brilho que o incêndio causa. Há muitas horas atrás este homem encontrava-se em sonhos de campos verdes e belos rios, porém acordara em uma manhã em que talvez não acordar fosse a melhor opção.
    Assombrado pela memória de um paraíso perdido, em sua juventude ou sonho – ele não consegue ser preciso- ele agora está acorrentado a um mundo fracassado. Nada mais será o suficiente. Nada mais. Lembra-se de sentir seu sangue congelando e coalhando logo em seguida pelo medo. Seus joelhos tremeram e procuraram o caminho que encontraria a noite. Suas mãos enfraqueceram no momento da verdade. Seus passos vacilaram. Pela primeira vez a culpa se apresentou à linhagem dos seres humanos e suas consequências permearão todos os discursos por eles elaborados.
    Um mundo. Uma alma. O tempo passará como correm os rios.
    Em pé, lá do alto, ele observa, com dificuldade em meio a escuridão e as lágrimas, os animais correndo e morrendo, as aves todas dispersas e perplexas em seus voos, o incêndio que castiga o imenso jardim e o faz desaparecer. De joelhos ele cai. Lentamente, imagem e semelhança do que deveria ser em sua maior parte divino desmoronam até se tornarem por completo em algo mortal e confuso. Uma cabeça. Peito. Braços. Mãos. Pernas. Pés. Tudo. Está desconstruído por completo, sua nudez o incomoda, deseja esconder-se. Hábito que trará a sina das perguntas intermináveis que afogarão os filhos mais distantes em inquietações no que se chamará futuro, e de agora em diante serão sujeitos ao tempo...ou morte. Como desejarem chamar.
    Fala consigo mesmo – e isso também é novidade agora -, com sua própria mente. É como falar com um rio de amores e dedicações perdidas, e o silêncio responde a estes convites eternamente redundantes. É terrível! Como o fluxo escuro e perturbador de um mar denso. Severa indicação do que virá a ser.
Sente frio pela primeira vez. Tosse. Surpreende-se. Há um vento invencível que sopra esta noite, há poeira em seus olhos, cegam sua visão. O silêncio. E o silêncio insiste em falar mais alto do que aquelas palavras... de promessas quebradas.
Filipe Lemos.

sábado, 17 de setembro de 2011

Música do Dia

What You Were - The Drums, por Filipe Lemos.


Um Certo Romance

    Já passa das quatro da tarde e todos os jovens estão reunindo-se em frente ao clube. É domingo, o que mais poderia ser feito? As horas vão se estreitando e a rua parece ter sido tomada por um exército de jovens amantes das superficialidades do que um dia foi os anos 80. Todos com seus clássicos Converses e Reebooks estourados, bottoms, coletes... é um improvisado espetáculo vintage. A maioria dos que estão ali não se importam com as bandas que vão tocar ou se alguma delas um dia realmente fará sucesso. Na verdade o ponto não é esse. O ponto é que não há mais nada autentico e sincero ali. O ponto é que não existe mais romance por ali.
   Todos estão conversando, bebendo e fumando, mas na calçada é possível  notar uma garota que se destaca no meio de toda essa vaidade imatura. Ela se diverte com todo o esforço que aquelas pessoas fazem para demonstrar autenticidade. Balança a cabeça e um sorriso de desdém aparece no canto dos lábios.
    -Sim, é verdade. Eles não conseguem enxergar. E se um de nós dois fossemos lá falar isso pra algum deles levaríamos um soco – um rapaz diz.
    -Se você pudesse ver os que eu conheço concordaria que não existe mais romance por ali. - Ela responde ao rapaz que podia jurar ter lido sua mente.
    -Sabe... É até engraçado você perceber isso em todos eles – o rapaz diz enquanto sorri. – Se você quiser podemos ir lá e falar tudo isso para eles. Contar tudo isso ainda hoje à noite.
    -Eles nunca escutariam. Eles já tem as mentes feitas, atrofiadas. Claro! Está tudo indo muito bem levando a vida desse jeito.
    Ele senta ao lado da garota. Ela pega um cigarro e ele abre sua garrafa de cerveja. Os dois se olham e começam a rir juntos.
    -Não sei o que tanto essa gente vê aqui nesse lugar. Sabe... aqui não tem nada de mais, apenas música. É engraçado, todos pensam que estão nos anos 80, mas toda pose cai quando o celular de um deles toca e a gente ouve o ultimo ringtone da moda.
    -Pois é. Não é preciso ser nenhum Sherlock Holmes pra perceber que existe alguma coisa diferente ali.
    -Não me leve a mal. Posso estar parecendo um chato, mas eu não aguento esses caras que se acham porque tem uma bandinha – ele ri- ou aqueles que se acham no direito de agirem como retardados segurando um taco de sinuca na mão, com aparência de encrenqueiros, como se tivessem ido em cana uma ou duas vezes.
    -Você sabe, “é até engraçado você perceber isso em todos eles – ela diz enquanto sorri. – Se você quiser podemos ir lá e falar tudo isso para eles. Contar tudo isso ainda hoje à noite.”
    Surpreso em ouvir sua fala de alguns minutos atrás sendo repetida ele para de beber sua cerveja. Eles se olham novamente... e caem na gargalhada.
    -Bem, ali estão alguns amigos meus. O que eu posso dizer... Eu já os conheço há muito, muito tempo e provavelmente eles vão passar do limites hoje. Às vezes eles me irritam. – Ela diz.
    -Mas você não precisa se irritar hoje.
    -Não. Não da mesma maneira.
    -Isso. Não da mesma maneira.
    Ela termina o cigarro e arremessa a bituca com o polegar e o dedo médio. Eles se encaram novamente. Ela sorri e encosta a cabeça no ombro do seu mais novo companheiro.

Filipe Lemos.

Mundo de Feras

    Quem visse Diana agora, não a reconheceria. Por ora ativista dos direitos dos animais, quando criança já foi uma exímia assassina a sal armado de sapos.
    - Bicho tonto demais! – debochava.
Calhou de apaixonar-se por Dieguito, um rapaz distante de qualquer afeição pelo reino animal. É que fora mordido por seu poodle de estimação quando era bem pequenininho.
    Estavam de casamento marcado, ao que resolveram jogar na Mega Sena. Diana resolveu. Dieguito era contra qualquer tipo de jogo. Poderia impedí-la, mas arrisco-me a dizer que o rapaz cedeu assim que viu a quantia acumulada: 25 milhões de reais.
    Dali a um mês, a notícia: Diana havia ganhado a bolada e a primeira coisa que fez foi abrir uma conta conjunta com o noivo, fazer planos de doar grande parte ao Instituto Protetor dos Animais e logo comprou uma passagem com destino ao Pantanal. Ida e volta, duas, primeiríssima classe.
    Hospedados numa pousada luxuosa, Dieguito saía arrastado por Diana a fazer um tour pela região. A moça decidiu alugar um barco e navegar por aqueles rios. O motor parou. Possuíam somente uma espingarda e a si mesmos. O moço tinha pavor de água, de mato, inseto e tudo mais que se movesse e não fosse humano.
    Nadaram até a beirada e lá, um filhotinho de jaguatirica se aproximou do casal.
    - Atira nessa coisa, Diana.
   - Claro que não, Dieguito. Ela só nos fará mal se sentir-se ameaçada, acuada. Olha como ela é lindinha. Não quero nem posso atirar. Irá contra minha filosofia de vida e, aliás, o que meus colegas do grupo de proteção aos animais iam dizer? Jamais!
    Ouvia-se folhas sendo pisadas ao que um outro casal lhes fora visitar, um de onças pintadas.
    Diana hesitou tanto a disparar por acreditar bestamente na humanidade dos bichos que acabou sendo atacada e devorada pelo que seria o macho.
Dieguito pulou na água e nadou corajosamente até o barco, saindo ileso, com umas sanguessugas no corpo e uma fortuna que, certamente lhe faria esquecer do incidente e que jamais iria ser doada ao tal instituto, senão direcionada a compra de uma linda cobertura no Leblon.
    Enquanto saboreavam coxas a uma espécie de molho sautée, as onças conversavam:
   - Humanos, insistem em se comparar a nós achando que compartilhamos do mesmo instinto! Chegam a dever o Leão, - o Leão! - vê se pode.


Thiago Alcebíades

Verbo Que Se Fez Carne

     Sou Xangô ave maria sem muita graça pardon monsieur amém Jesuis.
   Sou rosa, bossa nova, brisa e frescor. Sou balão, sou monocromos, sou melodia. Sou fariseu, sou pão e vinho, sou ouro e sou cruz. Sou carne, unha e pedra. Sou Lúcia. Sou imagem.
    Sou Xangô ave maria sem muita graça pardon monsieur amém Jesuis.
   Sou espinhos, rock and roll, ventania e suor. Sou cor, poço sem fundo, sou letra. Sou coroa, sou vinagre, sou Maria Madalena. Sou praga pregada à todo pregador. Sou Don Quixote em busca do La Mancha. Sou Maria da Glória. Sou fogo. Sou tu.
    Sou Xangô ave maria sem muita graça pardon monsieur amém Jesuis.
    Sou espelho.
    E para você, eu não era nada, até ser ouvida.


Ana Esther

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Ela Quer

    Para ele seus cigarros, combinados com um bom café, fazem dele um sujeito excepcional. Comporta-se como um típico jovem que acabou de conhecer as exigências da vida adulta: com certa rebeldia, vontade de não envelhecer e insistentemente com os cabelos ainda grandes.
    Ela quer apenas alguém que fale as coisas que precisa ouvir. Nada além. Apenas uma boa conversa. Tem uma bela pose de mulher decidida e faz um grande esforço para ser autêntica, mas tanta originalidade intimida os homens...talvez ela tenha consciência disso, ajuda a manter o idiotas bem longe na maioria das vezes. Quem olha de longe imagina que ela seja um ser inatingível; demais para pessoas com preocupações normais. Nem imaginam que seu maior desejo é encontrar alguém que mereça seu respeito. Que passe os dedos pelos seus cabelos claros e finos enquanto conversam sobre qualquer coisa. Alguém que coloque a mão no seu pescoço enquanto a beija. Um homem que mereça seu respeito.
    Mas ele não sabe de tudo isso. E nunca vai saber. Está sempre preocupado demais em demonstrar intelectualidade com seus cigarros e o café, em parecer um aspirante à rockstar junkie contemporâneo. Tudo isso fica evidente para ela quando observa a maneira como ele estica as pernas sobre a cadeira, na maneira como segura o seu copo ou na posição da sua cabeça quando está caminhando: sempre para cima, com toda a superioridade que é possível atingir.
    Ela não dá a minima pra toda essa bobagem. Ela só quer um homem que mereça seu respeito.

Filipe Lemos

Dois Contos, Um Filme, Um Teatro

    "Estava em tudo e em lugar nenhum, e gritava: NÃO QUERO MAIS SER EU." Assim, subitamente, Maria Lúcia acordara de um sonho que não era sonho, mas sim uma daquelas reflexões em que nós perdemos na distinção do que é real e o que é pensamento.
    Levantou-se, agora observava um espelho e pensava: NÃO QUERO MAIS SER EU, essa afirmação não saia-lhe da cabeça. Por um instante lhe ocorreu a impressão de ter ouvido um resposta: QUAL EU?
    Espantada, prende seu olhar fixamente ao espelho, e num tombo de lucidez, se perde novamente em pensamentos, perdida, sem rumo, sem chão, num plano complexo, complexado. QUAL EU? Existia mais de um  eu em um só ser humano? Não sabia de fato responder a essa questão, mas no momento beirava a dúvida por se dizer que sim.
    E se realmente houvesse de ter que ser sim essa resposta?
  Maria Lúcia aceitou o sim, não quero mais ser eu, esse eu que todo mundo vê, que todo mundo sente, que todos presenciam, mas que no fundo não sou eu.
    -Vontade de viver- era o que soava do espelho; Maria Lúcia queria viver o eu que tem como garantia aproveitar o sublime que a vida nos oferece, para que na hora de sua morte não viesse-lhe a cabeça a ideia de que não tinha vivido. E repetia Maria Lúcia:
    -Quero largar tudo o que faço para fazer o que quero, quero largar tudo o que faço para fazer o que quero; quero fazer tudo o que quero e largar tudo o que faço. Eu quero largar tudo o que faço?
    E nesse exato momento lhe veio a dúvida de qual eu era melhor para se ser, o eu que vivia na comodidade da vida como ela é, ou o eu da vontade de viver, o eu livre sem medo do ridículo; a dúvida era grande, densa, pesava-lhe em suas costas. E vontade de viver gritava por dentro: DEIXE-ME
SER, Maria Lúcia, me acolha em seus braços, dê-me forças para existir, DEIXE-ME SER, Maria Lúcia.
    Ainda com o olhar fixo no espelho, não estava compenetrada de que a vontade de viver era a melhor escolha, mas pensava deliciosamente como seria fazer tudo o que desejava, e deixar de ser esse eu que não era eu. Contudo, vinha a dúvida, esta existia. A dúvida era maior que a vontade de viver, a dúvida era maior, mesmo que de algum modo, a revelia dela lhe tivesse passado pela cabeça a vontade de viver, já era tarde, a comodidade talvez lhe caísse bem, era tarde, apagava a luz, não se via mais o espelho. 
Maria Lúcia era um só eu e dormia.

Camila Rocha

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Morena

    Morena, pele manchada, 45 anos, obesa. É o que Maria via ao encarar o espelho do elevador do apartamento minúsculo onde vivia. A ela seguia o marido. Ele trazia todas as sacolas do supermercado, a carteira com os cartões e dinheiro vivo, a chave do carro, e a satisfação redentora de ser o esposo que nada deixava faltar. Consigo, Maria só levava a saudade de um filho que morava longe e a roupa do corpo, acrescidos, esporadicamente, do dever de pressionar o número 3 que não levava ao terceiro andar, senão o segundo. Apartamento 22. Maria se esquecera, deu meia volta: o marido era quem carregava as chaves da porta: deu-lhe passagem. Arriadas as bolsas, João rumava o quarto; da cozinha, vinte passos eram o bastante para alcançar a recamara; uma suíte bem da arrumadinha. Lá ele se barbearia, tomaria seu banho cronometrado, e era este o tempo que Maria dispunha para fazer uma breve chamada ao único rebento que a deixara a fim de cursar faculdade. Sacou do telefone e discou os números bem depressinha.
    - Almoçou hoje? O que vai jantar?
   Maria queria falar mais. Vitor também. Mas não podia; ela devia fazer as perguntas certas, canalizar as emoções e privar-se de tantas outras para que pudesse ser breve e saber as respostas que lhe acalmariam o coração: todas que afirmassem o bem-estar e sobrevivência do filho.
    É que a saudade era tanta, fazia tão frio por aqueles dias, um tempo feio, de manhã era uma neblina só! Falou mais do que devia. João estava de folga, não houve necessidade de barbear-se. A porta abriu-se e Maria teve de dar um tchau simpático. Mal sabia Vitor pelo que sua mãe estaria prestes a passar.
    Era como se João estivesse escarnecendo-a. Aquelas palavras doíam tanto, mas nem dava para notar aos olhos de quem via e ouvia. Estes, caso notassem, poderiam se perguntar: “- Por que ela se casou com esse crápula?”. Ora, Maria nunca foi burra, só religiosa. João era o homem que toda e qualquer mulher pedira a Deus! Altura mediana, bem peludo, um par de pés que não calçavam menos que 42, um sorriso bonito – recém sarado de uma gengivite -, soldado exemplar do serviço militar, bom filho duma mãe barraqueira de genes fracos, pernas esguias, tímido, sendo o mais preponderante, todavia, o fato de que ele era desejado por metade do bairro. Há 20 anos! No momento, era o homem que lhe deferia desaforos. Ah! Algo dizia que era um erro. Maria foi quem recheou todas aquelas 3 leitoas e fritou mais de uma renca de croquetes no dia do próprio casório: os convidados de mais tarde, além de notarem o cheiro de óleo saturado no cangote da noiva, garantiram a excelência dos canapés. Os anos foram se passando e Maria pôde conhecer o homem com quem se casara: um ignorante-repressor-machista-agressor-de-mulheres que beirava a insanidade; o mesmo que, quando aos seis meses de gestação, lhe tapou boca e nariz, dada a janela aberta. Quase louco porque falava demais, detinha umas concepções próprias bem estapafúrdias, vivia num mundo só seu. Louco por quase ter havido matado o próprio filho ainda no ventre da esposa; fora a vez que, como uma besta, inclinou a cama num repente, e fez rolar Maria contra a parede. Para evitar tais aborrecimentos, Maria teve de aprender, bem como todos ao redor, a conviver com o marido: calou-se.
    Já havia pensado num divórcio, sim, claro! Mas quando Vitor completou seu primeiro mês, Maria converteu-se e, desde então, João jamais a tocou novamente. Havia esperança! No entanto, junta-se a conversão ao silencio da esposa e nem necessidade tinha mesmo João de agredi-la. Además, “a mulher sábia edifica a sua casa”, e nesse intento, Maria resignou-se a trancar-se em sua redoma, seguir os passos e vontades do esposo, e privar-se duma vida. Um dia, já o Plano Real vigorando havia muito, lhe perguntaram quanto custava uma de suas telas; “ – Sessenta cruzeiros. Como é? Ce erre sifrão? ”. Disse e repito: Maria não era burra, só teve de afastar-se de uma realidade impossível; tudo para evitar confusões, oferecer um lar saudável ao filho e salvar o casamento. Estavam condenados a viver juntos! João teria de traí-la para que tivesse motivos justos e reconhecidos por Deus para divorciar-se.
    Não bastou chamá-la inconsequente. João reverberava, expansivo que só, com o telefone numa das mãos:
    - Larga do pé do garoto! Você já sabe que ele está bem, não é nenhum doente mental. Dinheiro? Todo o mês deposito os 400 reais que ele necessita, lhe pago o aluguel, que por sinal é muito mais caro do que o nosso, gás, telefone, internet, luz, e até as calças! Só pra que estude. Pra não dizer que não estou dando apoio. Olha pra mim! Nem o colegial cheguei a completar e ganho muito mais do que a gente da profissão dele. Burro sim, isso ele pode ser, inconsequente não! A isso ele não puxou você. Com que dinheiro você acha que eu vou pagar tudo isso se a conta do nosso telefone, nosso, vier lá nas alturas? Você fala feito uma cacatua! Pra quê essa necessidade infantil de conversar com a sua mãe e as suas irmãs toda semana? Vê se eles ligam pra você. Eles ligam, Maria? Me responde, Maria, ligam? Estou te fazendo uma pergunta! Você é perigosa, perigosa, menina! Sabe me irritar: enquanto falo com você, você não dá nem um pio, nem sequer olha pra mim. Olha pra mim, Maria, olha pra mim! Do que adianta economizar no banho; se lava feito um gato, aí vem pra sala e me faz ligações interurbanas que são um assalto, e solta os cachorros em cima do meu salário. Eu trabalho pra conseguir isso tudo, trabalho feito um cão! Tudo pra você ficar em casa, poder descansar, te dar a vida que toda mulher pede ao Pai Santíssimo. Precisamos economizar! E é só por isso que não te mandei pra um médico tirar toda essa gordura sobrando na barriga, nas pernas, nem paguei cremes caros pra clarear essa pele da cara, nem pra arrumarem esses seus dentes! O marido da Cléia paga, é? Hum, que maridão! Te disse: se não estiver satisfeita, vai embora, não vou te impedir. Vá viver com seus pais e suas irmãs, cuidar dos filhos delas! Quer dinheiro? Não posso dar! Só quando me aposentar, e olhe lá. Tenho um filho fora da cidade pra sustentar, pra ver se se encaminha na vida. Eu e você... Eu e você já somos velhos, é o que nos resta mesmo: esperar a velhice, e que o Vitor tenha compaixão de nós, considere toda a fortuna que gastei com ele, e não nos interne num asilo em Gramacho, mas sim que nos dê uma vida decente, que dê um jeito em você. Engraçado... foi só se casar comigo que virou o que virou. Claro, como sempre, vai me dizer que a vida de empregada doméstica no Rio era muito mais feliz. Ingrata! Quer voltar a trabalhar? Quer ganhar dinheiro? Pegue um ônibus e vá de reto ao Leblon: quem sabe sua ex-patroa, a de 20 anos atrás, não lhe dê o emprego de volta. Isso se ela te reconhecer! Ingrata! Aposto como se engraçava com aqueles ricassos que frequentavam a casa onde você trabalhava!
    Maria rompeu. Do jeito dela. João havia falado sobre esses homens algumas tantas vezes, ela estava acostumada, só aconteceu de perder o sentido ter que se submeter a tais ofensas. Era mulher direita, tinha princípios saudáveis. Levantou-se e rumou a cozinha, lá, numa sacola plástica, ela juntava alguns biscoitos, balas, uma banana, maçã, duas peras, e enchia uma garrafinha de água.
    - Olha pra mim, Maria. O que tá fazendo? Falei uma verdade, não é? Era disso que você estava precisando, de umas verdades bem ditas. Duvido se para os engravatados você não era puro amor. Nem precisa ir tão longe: o marido da patroa, aquele velho! Claro, sempre andava de roupa bonita, magrinha, corpo de modelo, levava os filhos dele pra caminhar na praia. Sempre chique. Com que dinheiro, hein? Com que dinheiro, se você dava grande parte a sua família? Diz, Maria, diz.
    Maria virou-se e lhe pregou uma bofetada. Outra, agora, com as costas da mão. Mais uma. Ah! João não tolerava ser enfrentado: caminhou a procura de uma pistola que guardara em cima do guarda-roupa e que há anos não mexia. Ao que Maria lhe surge à porta do quarto.
    - Você vem com o angu pronto, e minha polenta já está frita! Doei a arma numa daquelas campanhas de desarmamento. Ia me matar? Ia atirar em mim, João, estou lhe perguntando! Tenho certeza que sim. Você e sua mãe são
farinha do mesmo saco. Lembro de quando sua tia Joana empurrou o pobre do Afonso ribanceira a baixo seguindo conselhos da megera. Estou saindo de casa!
    Maria caminhava pelo corredor de 20 passos da residência, munida de sua sacolinha, e era seguida por João, que falava e falava.
    - Vai mesmo seguir os meus conselhos? Será que ainda consegue lembrar do ônibus que tinha de pegar pra chegar ao Leblon? A vida com os ricassos fedorentos era muito mais gostosa, verdade, Maria? Vai poder andar por toda a Ipanema, conhecer Paris, Afeganistão, sei lá o quê! Você se arrepende de ter recusado o convite pra ir trabalhar pra sua patroa lá na Europa? Eles eram ricos porque tinham televisão! Eu também tenho, também sou rico. – Maria já havia dado as duas voltas da chave na porta e, quando alcançava a maçaneta, João disparou: - Se passar por esta porta, Maria, você estará traindo não só a mim, mas também ao nosso filho.
    Maria largou a maçaneta. Virou-se. Deu uns quantos passos e pôs-se diante do marido, ao lado do aparador. Estendeu a mão, abriu uma das gavetas enquanto mirava os olhos de João, alcançou a carteira de motorista recém tirada, e proferiu tais palavras:
    - Eu sei sim dirigir, e Vitor não é seu filho!

Thiago Alcebíades

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Rápido pensamento antes de uma despedida


    Até mais. Lembro-me apenas dessas últimas palavras. Já não o olhava, seguia o caminho para casa. Por segundos pensei em me virar, encará-lo e dizer... (qualquer coisa que ofendesse). Havia perdido um domingo junto dos meus amigos - o último antes de voltar para a cidade onde vivia - para encontrá-lo e tentar. Tentar o quê? Os meses que se passaram não me trouxeram nenhum ensinamento? A resposta era afirmativa, minha posição diante de tudo era de uma negativa sutil, quase sonhadora. Sabemos da verdade, tomamos gostinho pelo que dói, pois sonhamos com algum tipo de remédio que valha por todos os dias de agonia. E dor mesmo é aquela quando percebemos. Perceber e isso basta. A percepção é a beira de um precipício. Eu estava lá, em queda livre. Só não sei como escorreguei. Há de existir algo que nos dê um empurrão.
    Não me virar foi prudente. Talvez eu já soubesse, um dia ele perceberia que suas certezas eram incertezas, já não sabia o que queria, estava totalmente coberto de infeliz poeira e, sobretudo, o tempo passou rápido demais. Os dias, os meses, os anos. Chicotes do tempo. Água fria em nossa cara. Só nunca pensei que tudo que estimei e julguei ser mais valiosos fosse de areia. Um vento e estava tudo desfeito. Acreditava. Finalmente tinha me encontrado em um outro, ainda negando que nos encontramos quando os dois estavam perdidos. Somos bússolas quebradas, todos nós. Contudo negamos e fingimos ser melhor andar em uma linha atribuída como sensata, perdemos a oportunidade de entrar no olho do furacão e irmos para o desconhecido. Sempre vestiremos sapatos de cristal e ao bater deles voltaremos para casa. Aquele dia com ele me mostrou que tudo mais era não. Não continuaríamos. Não pertencemos. Não. Eu não te amo. Então bati os meus.
    Até mais não, Adeus. Eu disse adeus. E caminhei para pegar o ônibus. A primeira pessoa a me ter e a se entregar a mim, ainda que rapidamente, estava diminuindo de tamanho à medida que dava meus passos. Nunca o beijei novamente, nunca viajamos, casamos ou tivemos filhos, como planejamos. Ainda assim isso não era de tudo ruim. Eu sabia. Em seus beijos, viagens, em seu casamento e em momentos com seus filhos, ele se lembrará de mim. E um dia, quem sabe, perceberá.


Matheus Torres

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Dolores

Cria dores
Trai dores
Mata dores
Recria dores
Trai dores
Mata dores
Recria dores
                       ............           Endo senfim

Camila Rocha

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Amanhã e amanhã e amanhã e amanhã...


Este texto é uma simples homenagem à banda Alexisonfire, que encerrou suas atividades como grupo recentemente.
Os trechos das cartas e o diálogo ao telefone são traduções livres de trechos das músicas “No Transitory” e “Sharks and Danger”, ambas fazem parte do álbum “Watch Out!” - Distort Entertainment (2004).


Há quem diga que viver é assumir diferentes papéis constantemente, como se a vida se desenrolasse como uma grande peça de teatro e viver não fosse mera encenação. Muitos desejariam que viver fosse fácil assim, ao menos existiria a vantagem de ensaiar as ações antes de se apresentar. Talvez seja muita presunção dizer que é fácil a arte de encenar. Quão difícil deve ser impedir que um personagem não assuma o lugar de quem realmente somos.
Certa vez um homem – sim, alguém como nós – por ter de encenar tantos personagens quase deixou de ser quem realmente foi um dia.
Após varias semanas de insônia castigante aquela fora uma noite em que finalmente havia conseguido a proeza de dormir e ao acordar na manhã de domingo pode ver sobre o tapete da porta uma carta. Assim estava escrito:

“Então isso é o que chamam de outra noite interminável. Tão cansado de acreditar se isso está certo ou errado, eu acho que esta causa está perdida, eu gostaria de apenas conseguir dormir. Sinto-me como um tipo de sombra, apenas um escravo das semanas. Se tudo der errado, se isso é apenas mais uma noite interminável você sabe que ali sempre haverá amanhã e amanhã e amanhã e amanhã...

Atenciosamente, Parte-de-você.”

A perplexidade envolveu os pensamentos daquele homem profundamente. ”Quem escreveu a carta?” “O que significam todas essas palavras?” “Quem será parte-de-você? Uma Mulher?” “Sem chance.” E o domingo se foi como deveria ir: Lentamente. Dormir mais uma noite foi uma conquista e a semana seguiu vitoriosa em noites bem dormidas. No final de semana decidiu responder a carta que havia recebido. Escreveu. Ao terminar deparou-se com um problema, não havia remetente na carta que recebeu, simplesmente fora jogada por baixo da porta (assim imaginava). Decidiu deixar a carta no lado de fora de sua porta, no chão. “Quem sabe alguém realmente espere uma resposta.” – Pensou.
Lá estava outra carta, coincidentemente no domingo seguinte. E a correspondência entre eles prosseguia de forma progressiva, em nenhum momento descobriu quem era Parte-de-você. Em uma das cartas ao desconhecido escreveu:

“Encontro-me em um constante estado de estar prestes a ser feito em pedaços. Então por que eu já não sinto nada? Talvez a ansiedade de viver essa vida esteja me sufocando, como se me sufocasse com arames farpados a ponto de me fazer perder os sentidos, os sentimentos, todas essas coisas e...”

As noites de insônia intercalavam-se nos dias da semana. Desde o inicio efetivo do processo de correspondência as noites de sono rotineiras haviam sido interrompidas, em contrapartida, o fluxo das correspondências crescia constantemente. Acreditava que aquilo realmente estava lhe fazendo bem, nunca, em sua pobre vida, pôde confiar em alguém. Sentia-se muito bem por ter alguém em que pudesse confessar suas inquietações.
Tudo parecia correr bem após alguns meses. Em um sábado qualquer decidiu fazer uma limpeza em seu apartamento. Começando pelo quarto, onde passava a maioria do tempo. Move algumas coisas ali, outras vão para o lixo perto da escrivaninha, algumas pra dentro do armário ou para baixo da cama... Foi quando descobriu um saco muito bem camuflado embaixo da cama. Abriu. Não pode acreditar no que via. Eram as cartas que respondia ao desconhecido. “Mas como, como podiam estar ali? Impossível!” Pensou em contar aquilo para alguém. Mas quem? Era um sujeito solitário, e mesmo que existisse alguém para ouvi-lo, quem acreditaria?
Por não entender e não se conformar com que se passava parou de escrever e já não dormia mais como antes. Ou já não escrevia mais por não conseguir dormir? Não sabia mais. Em uma manhã, fruto de uma noite privilegiada por raras horas de um breve cochilo, viu sobre o tapete outra carta. “Depois de tanto tempo?”

“Agora que todo o seu mundo se foi como se estivesse em chamas, essa noite continua interminável. Você pensa que ainda está em segurança? Parece que tudo deu errado, nós fomos descobertos, mas desta vez não haverá amanhã e amanhã e amanhã e amanhã...

Parte-de-você.”

        Decidiu não responder já que tudo não passava de um truque que ainda não sabia como funcionava. Na manhã seguinte lá estava outra carta, a última, que dizia:

        “Como a vida que está presa junto a mim eu pego tudo o que eu posso. Você nunca foi alguém para um confronto, mas agora tudo repousa em tuas mãos. Adeus.

Parte-de-você.”
        E assim, em vão, ele respondeu:

        “Quem estará aqui para dizer quão estúpido eu sou? Quem me protegerá de ser açoitado. Ansiedade me sufoca com arames farpados!”

        Ao terminar de escrever conseguiu entender o que se passou durante todo aquele tempo. Tudo fazia sentido agora (era o que acreditava).
        Dentro do escritório o som é de muitas pessoas falando nos telefones ao mesmo tempo em que os dedos batem nas teclas. Um telefone toca.
        - Psiquiatria St. Catherines, Linha de ajuda . Nancy, falando.
       - Estou certo de que isso soará incrivelmente ridículo e eu... Eu não espero que alguém acredite em tudo isso. Eu... Por um tempo venho me correspondendo com a minha sanidade e eu... Eu sinceramente tenho a sensação de estar perdendo o interesse no processo de escrever as cartas. As partes das cartas estão ficando cada vez mais curtas e curtas e eu... A coisa toda me deixa realmente preocupado. Eu só quero demonstrar que grande problema isso é.
        - Certo.
      - Eu meio que tenho esse... hábito terrível de ficar fazendo perguntas estúpidas a mim mesmo, como: e se... existir em meu corpo um ponto que eu possa tocar e fazer meu coração parar de bater? E se lá fora... existir uma bala certeira que atravesse minha janela e me atinja? Como: e se... e se existir um enorme e inevitável cometa vindo em nossa direção que destruirá a terra e todos nós? Como eu posso me livrar de todas essas perguntas se eu não tenho para quem fazê-las? Quem estará aqui? Por que... Quem estará lá... No hospital? Que irá me dizer que tudo isso é bobagem... É um sonho? Apenas um sonho. Isso não é uma piada. E eu... Eu nunca vou dormir?!

Filipe Lemos.

Fotografia.


      “Existia o mundo. Existia a vida. Existia Vovó Izilda.
    Vovó – ou Izilda, como preferir – tinha rugas, experiência, amor, uma aliança de viuvez guardada, cinco filhos, dezessete netos, quatro bisnetos e um câncer que acabara de descobrir em uma consulta médica. Ela, mais convicta do que quando fez seu primeiro bolo, resolveu gastar seus findos fôlegos se divertindo.
     Primeiro foi fazer caridade. Doou toda sua pequena quase fortuna guardada com esmero no Banco Central à um lar para dependentes químicos. Mas não foi o bastante, precisava de algo mais radical. Sua próxima parada foi à vendinha do Zé Tonho. Comprou um saco de milho, foi até a praça e tentou alimentar os pombos. No fim, alimentou mesmo foi uma família sem tetos que estava por ali. Mas não foi o suficiente, ela precisava de adrenalina. Já era quase noite e, depois de quebrar sua bengalinha em um buraco na calçada, se deparou com um parque de diversões aberto. Foi então que uma luz brilhou. O sonho de infância de Vovó Izilda era dar uma volta na Roda Gigante. O que poderia dar mais adrenalina que isso?! Pegou seu ultimo trocadinho e comprou uma ficha. E lá foi ela rumo ao brinquedo dos sonhos. Antes de completar a 2° volta, a roda gigante caprichosa quebrou com Vovó Izilda presa no mais alto cume; abaixo dela, assaltantes, como que teletransportados, surgiram com armas e reféns. Vovó mal acreditou na quantidade de dinheiro que estava sendo roubada daquele lugar. Como um parque de diversões tinha tudo aquilo? Porém, mantenham a calma amigos, a história não termina por aqui. De repente, e não mais que de repente, a super heroína chegou voando mais rápida que uma bala, decapitou e esquartejou os bandidos com seu machado da justiça, foi ovacionada pelos pobres mortais e sumiu; ainda, não mais que ainda, mais rápida que uma bala. Foi então que aquela musiquinha de parque de diversões sabor infância retornou aos alto falantes e tudo voltou ao normal. A roda gigante, que voltara a funcionar, deixou Vovó Izilda partir; esta, que por sua vez enjoada com todos aqueles 360°, apenas desejava morrer em paz.”
    
    - Mamãe, quer que eu leia outra história para você dormir?

Ana Esther

terça-feira, 16 de agosto de 2011

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Literatura para além dos livros: entrevista com Ana Cláudia Viegas.

por Ana Esther e Efraim Oscar Silva.   

    A professora Ana Cláudia Viegas, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), participou de mesa redonda no anfiteatro da Reitoria da UFSCar, na manhã de 25 de maio de 2011. Chamada “A prosa brasileira hoje: modos de ler”, a mesa redonda fez parte do I Colóquio UFSCar/Unesp de Literatura Brasileira Contemporânea. Leia a entrevista exclusiva que Ana Viegas concedeu ao Fim de Noite.

F.D.N. – É ruim atribuir rótulos, mas os escritores acabam sendo agrupados, em termos de história literária, em determinados períodos ou tendências. A prosa brasileira contemporânea já pode ser definida de alguma forma?

Criaram-se os rótulos “Geração 90” e “Geração 00”, por exemplo, que, ao mesmo tempo em que servem como estratégia de marketing para os novos autores, procuram traçar pontos de identificação entre os componentes de cada um desses grupos, e de diferenciação entre um grupo e outro. Como qualquer classificação, não deve ser pensada de forma fechada e absoluta. Diante de uma imensa diversidade da prosa atual, podemos traçar algumas tendências, mas sempre pensando que nenhuma delas define por si só a produção contemporânea.

F.D.N. – Quais as marcas características do romance e do conto que estão sendo publicados hoje?

Podemos mapear algumas marcas na prosa brasileira contemporânea, mas sempre – repito – tendo o cuidado de não tomá-las como definidoras do que está sendo publicado hoje. Eu destacaria, por exemplo, o uso de uma primeira pessoa que mistura as categorias de autor e narrador, com um trânsito entre autobiografia e ficção; um “novo realismo”, que busca mais um “efeito de real” do que uma representação mimética da realidade; uma escrita bastante sucinta e fragmentada, acelerando ainda mais certas conquistas modernistas; uma escrita que vai na contramão dessa aceleração crescente da atualidade, retomando um estilo mais clássico, num certo retorno ao sublime.
Um outro aspecto a destacar é a o uso da internet como ferramenta de circulação do literário, de variadas formas: espaço de experimentação, divulgação de textos, contato direto com leitores, trocas entre os escritores, debates, etc.

F.D.N. – A sua fala versou sobre personagens de romances de Chico Buarque, Sérgio Sant’Anna e Marcelo Mirisola. Em que medida essas personagens refletem ou problematizam o atual momento vivido pela sociedade brasileira?

Escolhi personagens-escritores que nos permitem problematizar aspectos do campo literário na atualidade: relações entre o escritor e o mercado, e entre a alta cultura e a cultura de massa, a formação cultural do escritor mediada pela tevê, questões sobre autoria.

F.D.N. – Explique-nos melhor duas afirmações suas: “Houve a transformação do escritor numa figura midiática e fantasmática” e “O livro não é mais o produto final do trabalho do escritor.”

Se o escritor moderno já foi definido como um “ser de papel” (Roland Barthes), hoje temos um contato bem frequente com o corpo, a voz, a imagem dos autores contemporâneos. O autor lê trechos de seus livros em eventos, fala sobre sua obra em entrevistas, de modo que a figura autoral vai se construindo em paralelo à obra. O papel do escritor ultrapassa os limites do texto, integrando-se a um cenário literário e cultural, onde ele atua.
Uma questão interessante e bem característica da atualidade é o trânsito dos textos por diferentes medias: o livro, o cinema, a internet, a tevê, a história em quadrinhos. Ou seja, a publicação em livro vem deixando de ser a última finalidade do texto escrito, passando a funcionar como uma das etapas da circulação desse texto. 

sábado, 25 de junho de 2011

Mergulho Noturno

Tente sincronizar a leitura com a música.
           Um ruído... Um sonar...
        Em pé, com os braços apoiados sobre o teto do carro, Brice queima o filtro de seu cigarro com o último trago. O filtro voa deixando um rastro no ar frio na noite de Nova York. Um ruído não sai de sua mente. A cabeça baixa é suspensa pelos dedos que se agarram entre os cabelos negros. Maldito ruído que se mistura com o vento forte, como o que move as ondas em uma praia. Sua memória funciona, nesse momento, como um sonar emitindo o som que sinaliza uma busca ansiosa em sua mente por algo que faça sentido...o sonar apita...a resposta chega...nada.
        O carro começa a mover-se lentamente pelas ruas de Nova York. Brice passeia como um turista, seguindo vagarosamente pela 7th Avenue avista a grande Times Square. Tudo parece uma longa cena em slow-motion, seus movimentos, seu carro, todas aquelas pessoas caminhando lentamente como vultos entre as luzes hipnotizantes da Times Square. Brice não tem pressa, ninguém o espera em casa. Seu respirar é calmo, aprecia toda a cena que se desmembra diante de seus olhos. Todas as luzes, todos os comerciais, todas as lojas, tudo vagarosamente. O ruído é insistente... O sonar apita. Muita coisa em sua mente e nada para pensar nesse dia de folga, dia que com muito esforço foi prolongado por alguns drinks. Foram muitos os meses em que trabalhou sem um dia de folga, não queria folga, afogava-se no trabalho para não ter que pensar em sua vida arruinada. Brice carrega sua arma até mesmo nos dias de folga, a experiência fez com que isso se tornasse um habito, chamadas de emergência eram recorrentes e ir ao Brooklin ou à Hell’s Kitchen desarmado não é boa idéia.
        Subitamente, como em uma colisão, sua mente atropela algo escondido em sua memória. A realidade. A plena consciência do tempo, existência e finitude. Isso é perturbador... O ruído continua. Tudo de uma só vez: Eduard Brice, detetive da divisão de homicídios. Pai de duas filhas lindas. Divorciado. Viciado em heroína. Todas essas verdades rasgando sua sanidade, atropelando sua calma em contraste com a cidade que se movimenta lentamente lá fora. É horrível.
        Seu coração dispara em uma agonia alucinante. Sua pele empalidece. A ansiedade faz seus dedos congelarem no volante enquanto o carro faz a curva à direita e cai na 39th Street. Segue, com a garganta seca, até chegar ao cruzamento com a 9th Avenue. Para em frente a um edifício antigo na 9th, tira a jaqueta e joga no banco de trás. Por cima da camiseta azul o coldre axilar guarda sua Colt. 45. Brice treme enquanto abre o porta-luvas e em um fundo falso pega a droga, uma colher, seringa... O ruído, maldito ruído! A borracha apertando seu braço faz a veia saltar enquanto seu coração bate descompassado.
        O ruído desaparece. Tudo muda repentinamente. O delírio causado pela droga o faz cair em uma espécie de mergulho noturno. A atmosfera é comprimida, o som é frio, a pressão da água, que cobre sua mente, espreme sua carne. Submerso consegue ouvir seu coração bater abafado no peito. Na escuridão lenta de seu oceano de surrealidades um som doce como de uma caixa de música mistura-se com uma voz metálica entoando uma linda melodia indecifrável...o sonar funciona melhor agora. Tudo isso é maravilhoso, perfeito, era o que precisava. Explora a imensidão negra, e a canção se aproxima mais e mais.
        Uma pontada forte faz Brice abrir os olhos e rapidamente entrar em um estado de oscilação entre o delírio e a realidade. No seu mergulho algo agarra suas pernas na escuridão, muitas mãos começam puxar o seu corpo para as profundezas. É uma luta violenta para sobreviver. Sua pupila está contraída. Já não dá mais para respirar com tanta eficiência e cada vez mais sua consciência vai se perdendo na imensidão escura. A morte em seu delírio comunica-se com a morte real.
        Lembranças aparecem diante dos seus olhos como fotografias. A infância, os jogos de baseball com seu pai... A escola, as medalhas. Os frames rasgam sua mente. Como labaredas as imagens aparecem e se apagam dando lugar a outras... O ruído está lá novamente...o sonar continua emitindo o som que caracteriza a busca. Os frames continuam... A academia de policia, o casamento, o divorcio... Os corpos nas cenas dos crimes que investigou. A morte chega... Um segundo e o ultimo suspiro.
        A cabeça cai sobre o volante. O nariz sangra e os olhos abertos ainda brilham. O ruído insiste. As ruas e as pessoas continuam sua peregrinação em câmera lenta, as luzes, as vozes, os carros, tudo caminhando para um estado de letargia. Brice cai de lado no banco do passageiro. O sonar apita... Numa ultima busca.

Filipe Lemos

A Cria do Seu Cornélio

Cornélio era um homem de bem, gastava tanto a vida na labuta que nem sentia que vivia. Nunca foi de muita beleza, mas pra compensar tinha um alazão de primeira, sangue puro, uma formosura que só vendo. Não era atoa que, nas raras horas de folga, seu passatempo era rodar a cidade com seu cavalo dando inveja aos olhos dos moços e cobiça aos olhos das moças. E foi numa dessas que arranjou sua mulher, uma loira de lomba larga, mas que, no final das contas, não era de muita valia: tinha a fama de rampeira, só o coitado é que não via. Quando ela emprenhou geral avisou: abre o olho, Seu Cornélio, o moleque não é teu. E ele retrucava: já me traiu sim, mas jurou que o filho é meu.
Maldade ou não, o padeiro da vila respirava aliviado com a crença do coitado.
Mas olha bem que o tempo passou e já é dia de parir. Cornélio bota sua mulher na carroça aos berros com os coices do moleque querendo sair e dispara seu belo alazão em direção da casa da parteira. A cidade segue atrás em procissão, afinal de contas, todo mundo tinha seu vintém naquela situação.
A gente se amontoou envolta da janela na expectativa, era um empurra-empurra danado pra conseguir assistir ao drama da vida. As apostas já estavam em dez pra um que o moleque ia ser negrinho do cabelo duro. Mas não é que, pra nossa surpresa, de dentro daquela mulher saiu um belo de um potrinho de crina e quatro patas?

Lucas Bueno

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Música do Dia

Staircase - Radiohead, por Filipe Lemos.


Poema

- Paulina Pauzack, porque casastes? Fizemos uma jura de amor eterno, não te lembras? Agora tens por esposos meu pior inimigo e ainda trai a ambos com um garoto que poderia ser teu filho.  Neste momento, percebo que tudo não passou de um engano e que apenas interpretava me amar.
- Oh, Carlos Carpano! Não me tomes assim! Há coisas que não sabes. Quando seu carro explodiu há vinte anos atrás e todos acreditávamos em sua morte, fiquei desesperada! Eu não tinha para onde ir; foi então que Rodolfo Rodrigues me pediu em casamento. Não pude recusar, pois estava grav...
Ahhhhhhh nããããããão! Droga. Justo no momento em que Paulina Pauzack iria revelar que o Fernando Fernandes é filho de Carlos Carpano! Porque a energia tinha que acabar agora?! São os minutos finais do último capitulo da novela... último capitulo da novela... Droga. A pior parte é que não vou descobrir o porquê do filho da Maria Marasquino nascer azul. Vontade de ir ao banheiro. Mas, e se a energia voltar? Melhor esperar. Azul? Porque azul? Aumentando a vontade de ir ao banheiro... Não posso ir agora; o horário de usar o banheiro é após o termino da novela e antes do jantar. Carlos Carpano disse que quando se está morrendo, seus sentidos se poetizam. Balela. Porque poema?! Ninguém gosta de poema. Eu não gosto de poema. Eles apenas te fazem sentir, entender e ver coisas que você não quer, para depois ter de ficar pensando nelas pela eternidade. Não quero isso. Nossa, tem uma teia de aranha naquela parede. Preciso limpar. Não vou limpar, não posso usar meu pano de prato; ele está intacto, intocável e muito limpo. Ao sinal de escuridão a claridade se dissipa, e como um deus adquire vontades de outrem, exige sacrifícios e retorna quando nós, fracos e humanos, cansamos de esperar. Vou deixar o pano em meu ombro mesmo. Além do mais, eu teria que levantar daqui e a energia poderia voltar. Definitivamente não. Ei, há varias teias de aranha... E como este chão está sujo! Já são quatro horas da tarde. Meu jantar vai atrasar. Droga. Será que tudo sempre foi escuro assim? Nem ao menos me lembrava desta foto na parede.Quantas correspondências na porta... A energia precisa voltar, tenho tarefas a cumprir. É melhor me concentrar em olhar apenas para a televisão.
Blac!
Ele... caiu. Meu pano de prato caiu neste charco de lodo ao qual meus pés amaciam. Ficou tão... sujo!
Quem é esta refletida na tela? Ela me hipnotiza. Está trajada a penas por peças intimas ainda etiquetadas; ao seu lado, um preservativo usado e variadas notas de dinheiro que já não possuem mais valor. Seu corpo pintado de roxo, tela construída por um bom artista. Olhos flamejantes, carimbados pela dor. Parece-se comigo. Seus olhos parecem-se com meus olhos; mas não são os meus. Esta não sou eu. Esta não pode ser eu.
Oito horas. Preciso ir fazer o jantar. Preciso recuperar meu pano de prato. Tudo voltará a ser como era... Sim. Tudo voltará.
Aqueles olhos...
BKKKKKK
Chamas do fogão: lentas, estáveis, poderosas e cruéis. Os olhos...tentam me dizer algo. O que eles tentam me dizer? Parecem clamar por socorro. Vou ajudá-los. Preciso ajudá-los. Não tenho alternativa.
Os olhos, o pano de prato, as chamas do fogão
Fogo.
Solidão, rosto retalhos rabiscados quase carvão
Neles, a última leitura:
Aqui jaz um coração.
Silêncio.
Luz.
- Boa noite. Estamos no ar com o Jornal Real.


Ana Esther

Um Filme Snuff

Filmes snuff são filmes que mostram tortura, morte ou assassinatos reais de uma ou mais pessoas, sem ajuda de efeitos especiais, para o propósito de distribuição e entretenimento ou exploração financeira.


            Claquete, luz, câmera e acorda! Acorda! Ã!? Ah, já vou... Vermelho, ver... me... ACORDA! Já tá na hora, porra. Quê!? Onde eu tô? Ah, que inferno. Arrastada põe-se de pé. Esgueira-se ziguezagueando até... Nossa, tô horrível. Aquele choque de água gelada de encontro ao rosto pela manhã. Escova, pasta, enfia na boca, esfrega, esfrega, esfrega, esfrega, ânsia de vômito, argh! Chega. Cospe o branco e esconde o bafo com tabaco.
            Nossa, isso aqui tá um chiqueiro. Arranca fora a roupa. Tô nojenta, olha essa carne sobrando, preciso emagrecer. Ai, que canseira viu. Será que fizeram um negrinho? Merda, já tá na hora, vou suja assim mesmo. Não acho nada nessa pocilga! Enfia o primeiro pano que aparece por sobre a cabeça que sufoca de tão apertado; pega o jeans sujo e surrado e puxa nas pernas, arranhando e espremendo seus glúteos; uma tortura incessante desse último par de sapatos.
            Ao menos isso. Mas a esperança morre no primeiro trago de café: é café envelhecido, frio como a madrugada de inverno. O sol nem ousou em dar as caras por aqui. É naquele breu da manhã que os mortos se levantam de suas sepulturas e se arrastam pra se enfiar em outro buraco.
            Corre que já tá em cima da hora. Droga! Rasguei a roupa. Esse tecido aberto expondo minhas carnes. Não tem troca, não tem saída. Pega a corda, passa na cabeça da agulha, finca no tecido e puxa do outro lado, enfia do outro e puxa deste, enfia e puxa, enfia e puxa, enfia e puxa vida, tô atrasada! Enfia e... Ai, caralho, que dor! Chupa o dedo perfurado pelo metal quase que instintivamente, mas que desejo é esse por sangue? Ah, não aguento mais isso, enfia e puxa, quero voltar pra cama, enfia e puxa, enfia, faz o laço e amarra com força estrangulando o nó. Podia contar uma mentira pra faltar hoje. Corta a linha e corta essa! É sua primeira semana de trabalho e já tá morta!? Não tem saída, corre que já tá na hora. Mas porta tá trancada. Esqueci a chave. Cadê a chave? Esqueceu por quê? Cadê? Cadê? Aqui! Por que aqui!? Ah, não importa, já tá na hora. Abre a porta e o dia terminou. Corta!

Lucas Bueno

Complicações

E lá estava eu tentando assistir a aula mais chata da minha vida.
Foi do nada, mais que de repente, que comecei a pensar em amor. Piegas. Ou não. Talvez piegas sejam as pessoas que fazem-no parecer o que aparenta ser. Ou talvez piegas seja eu por não saber o que ele é. Mas será que todos o que dizem amar realmente sabem o que isto significa? Ou talvez as pessoas amem, mas confundem esse amor com outra coisa e chamam de amor algo que talvez não o seja? Que confusão.
Ai meu Deus, a gralha não, por favor, não, por favor, não...
 - Zé! O Zé... Aloou... Zé!
 - O que foi agora?
 -Calma. Só queria entregar meu bilhete pra você. Por favor, leia. É importante.
 - Ok.
Mais um bilhete. O que será desta vez?! Nossa, tem perfume. E está escrito em cor de rosa. Corações... oh não, era o que eu temia.

EU TE AMO

Qual parte do “eu não gosto de você” será que ela não entendeu?! Onde esse mundo vai parar?!
Pelo menos deve dar para enrolar um baseado depois com o papel. Ainda tem mais meia hora de blábláblá de física sei lá do que. Vou dormir que é o melhor que eu faço. Lá, ao menos, não tenho que me preocupar em ser a metade da laranja de alguém. 


Ana Esther

terça-feira, 14 de junho de 2011

Espelho d'água

Vai ver sou como esse rio,
Nascido em um lugar distante,
Suscetível à quedas
Rumo ao mar.

Na espera angustiante
De que até lá
Eu aprenda o que é amar.



Matheus Torres

Tábatha Gótica

Tabatha morava no fundo da prateleira de bebidas de um bar, de freqüência um tanto diferente, cheio de garrafas abertas e copos usados.
Era alcoólatra, tipo moderninha.
Dormia o dia todo, balada a noite toda.
De vez em quando seqüestrava alguma coisa mais forte nos cinzeiros lotados.
Aranha doidona essa!
Conheceu Charles, um aranhão novo no pedaço, mais louco que ela.
Firme na balada, Tabatha sempre tomando todas, mas de olho em Charles. Ele não bebia nada, louco de oxigênio mesmo, nem um peguinha quando rolava.
Tabatha era bem animada, e vai e vem, começa um rolo com Charles.
Charles sempre na seca, não bebia nada e bem loucão.
Manhã raiando, balada nas últimas, Charles e Tábatha já na teia, Charles gruda no pescoço da moça. Vampiro o moçoilo, veja só!
Além de aranha louca, alcoólatra e baladeira, agora vampira também!


Marcelo de Paula

sexta-feira, 27 de maio de 2011

quinta-feira, 26 de maio de 2011

O Amigo

     Um amigo encontrara outro, recém chegado de férias pela Europa e pergunta como foi a viagem:
     - Enquanto estava lá foi tudo bem, Paris, Londres, Barcelona. Mas minha viagem de volta foi uma tristeza. Imagine você que tive a maldita idéia de voltar de navio. Desde criança sonhava em viajar de navio.
     - E daí, você enjoou a bordo?
     - Pior, muito pior. Eu conto: ainda nos cais, quando eu ia subir a escada de bordo, vi uma mulher, uma morena fantástica. Ela me encarou e me lançou um sorrisinho malicioso, mas discreto. Percebi que estava acompanhada, mas naquela confusão do embarque não olhei a cara do homem. Só voltei a encontrar a morena, horas depois, passeando no convés. Ela se aproximou, colocou um papelzinho na minha mão e seguiu em frente sem olhar para trás. Estava escrito: “Camarote 110, 10h00”.
     - Você foi?
     - Claro que fui. Que mulher, meu amigo!Que corpo!Juro que nunca havia tido antes uma noite de amor como aquela!
     - Mas você não disse que ela viajava acompanhada?
     - Sim, mas ela explicou que o marido é viciado em jogo e iria ficar até tarde numa roda de carteado. “Não tem perigo de que ele volte antes das três da madrugada”
     - Então não entendo porque você reclama...
     - Já vai entender. Na tarde do dia seguinte eu estava descansando no convés quando um casal se aproximou. A minha morena e o marido. Ela foi logo me abraçando: “Heitor! Que surpresa! Você neste navio! Mas me deixe te apresentar minha mulher, estamos em lua de mel. Dolores, este é o Heitor, velho amigo de infância, afilhado de meus pais, somos quase irmãos!”
     - Puxa, que constrangimento. E você, como reagiu?
     - Eu estava querendo cair de morto. Gaguejei um “um muito prazer”, inventei uma dor de cabeça e fui para meu camarote, chorar de vergonha e remorso. Chorei horas a fio. Você faz idéia, fazer amor com a esposa de Alberto, meu melhor amigo de infância, um cara que, como ele mesmo disse, é quase um irmão pra mim!
     - Reconheço que deve ser terrível. E como foi o resto da viagem?
     - Ah, foi um tal de fazer amor e chorar, fazer amor e chorar, fazer amor e chorar...

Aldecy Fernandes - Kadiwéu