Morena, pele manchada, 45 anos, obesa. É o que Maria via ao encarar o espelho do elevador do apartamento minúsculo onde vivia. A ela seguia o marido. Ele trazia todas as sacolas do supermercado, a carteira com os cartões e dinheiro vivo, a chave do carro, e a satisfação redentora de ser o esposo que nada deixava faltar. Consigo, Maria só levava a saudade de um filho que morava longe e a roupa do corpo, acrescidos, esporadicamente, do dever de pressionar o número 3 que não levava ao terceiro andar, senão o segundo. Apartamento 22. Maria se esquecera, deu meia volta: o marido era quem carregava as chaves da porta: deu-lhe passagem. Arriadas as bolsas, João rumava o quarto; da cozinha, vinte passos eram o bastante para alcançar a recamara; uma suíte bem da arrumadinha. Lá ele se barbearia, tomaria seu banho cronometrado, e era este o tempo que Maria dispunha para fazer uma breve chamada ao único rebento que a deixara a fim de cursar faculdade. Sacou do telefone e discou os números bem depressinha.
- Almoçou hoje? O que vai jantar?
Maria queria falar mais. Vitor também. Mas não podia; ela devia fazer as perguntas certas, canalizar as emoções e privar-se de tantas outras para que pudesse ser breve e saber as respostas que lhe acalmariam o coração: todas que afirmassem o bem-estar e sobrevivência do filho.
É que a saudade era tanta, fazia tão frio por aqueles dias, um tempo feio, de manhã era uma neblina só! Falou mais do que devia. João estava de folga, não houve necessidade de barbear-se. A porta abriu-se e Maria teve de dar um tchau simpático. Mal sabia Vitor pelo que sua mãe estaria prestes a passar.
Era como se João estivesse escarnecendo-a. Aquelas palavras doíam tanto, mas nem dava para notar aos olhos de quem via e ouvia. Estes, caso notassem, poderiam se perguntar: “- Por que ela se casou com esse crápula?”. Ora, Maria nunca foi burra, só religiosa. João era o homem que toda e qualquer mulher pedira a Deus! Altura mediana, bem peludo, um par de pés que não calçavam menos que 42, um sorriso bonito – recém sarado de uma gengivite -, soldado exemplar do serviço militar, bom filho duma mãe barraqueira de genes fracos, pernas esguias, tímido, sendo o mais preponderante, todavia, o fato de que ele era desejado por metade do bairro. Há 20 anos! No momento, era o homem que lhe deferia desaforos. Ah! Algo dizia que era um erro. Maria foi quem recheou todas aquelas 3 leitoas e fritou mais de uma renca de croquetes no dia do próprio casório: os convidados de mais tarde, além de notarem o cheiro de óleo saturado no cangote da noiva, garantiram a excelência dos canapés. Os anos foram se passando e Maria pôde conhecer o homem com quem se casara: um ignorante-repressor-machista-agressor-de-mulheres que beirava a insanidade; o mesmo que, quando aos seis meses de gestação, lhe tapou boca e nariz, dada a janela aberta. Quase louco porque falava demais, detinha umas concepções próprias bem estapafúrdias, vivia num mundo só seu. Louco por quase ter havido matado o próprio filho ainda no ventre da esposa; fora a vez que, como uma besta, inclinou a cama num repente, e fez rolar Maria contra a parede. Para evitar tais aborrecimentos, Maria teve de aprender, bem como todos ao redor, a conviver com o marido: calou-se.
Já havia pensado num divórcio, sim, claro! Mas quando Vitor completou seu primeiro mês, Maria converteu-se e, desde então, João jamais a tocou novamente. Havia esperança! No entanto, junta-se a conversão ao silencio da esposa e nem necessidade tinha mesmo João de agredi-la. Además, “a mulher sábia edifica a sua casa”, e nesse intento, Maria resignou-se a trancar-se em sua redoma, seguir os passos e vontades do esposo, e privar-se duma vida. Um dia, já o Plano Real vigorando havia muito, lhe perguntaram quanto custava uma de suas telas; “ – Sessenta cruzeiros. Como é? Ce erre sifrão? ”. Disse e repito: Maria não era burra, só teve de afastar-se de uma realidade impossível; tudo para evitar confusões, oferecer um lar saudável ao filho e salvar o casamento. Estavam condenados a viver juntos! João teria de traí-la para que tivesse motivos justos e reconhecidos por Deus para divorciar-se.
Não bastou chamá-la inconsequente. João reverberava, expansivo que só, com o telefone numa das mãos:
- Larga do pé do garoto! Você já sabe que ele está bem, não é nenhum doente mental. Dinheiro? Todo o mês deposito os 400 reais que ele necessita, lhe pago o aluguel, que por sinal é muito mais caro do que o nosso, gás, telefone, internet, luz, e até as calças! Só pra que estude. Pra não dizer que não estou dando apoio. Olha pra mim! Nem o colegial cheguei a completar e ganho muito mais do que a gente da profissão dele. Burro sim, isso ele pode ser, inconsequente não! A isso ele não puxou você. Com que dinheiro você acha que eu vou pagar tudo isso se a conta do nosso telefone, nosso, vier lá nas alturas? Você fala feito uma cacatua! Pra quê essa necessidade infantil de conversar com a sua mãe e as suas irmãs toda semana? Vê se eles ligam pra você. Eles ligam, Maria? Me responde, Maria, ligam? Estou te fazendo uma pergunta! Você é perigosa, perigosa, menina! Sabe me irritar: enquanto falo com você, você não dá nem um pio, nem sequer olha pra mim. Olha pra mim, Maria, olha pra mim! Do que adianta economizar no banho; se lava feito um gato, aí vem pra sala e me faz ligações interurbanas que são um assalto, e solta os cachorros em cima do meu salário. Eu trabalho pra conseguir isso tudo, trabalho feito um cão! Tudo pra você ficar em casa, poder descansar, te dar a vida que toda mulher pede ao Pai Santíssimo. Precisamos economizar! E é só por isso que não te mandei pra um médico tirar toda essa gordura sobrando na barriga, nas pernas, nem paguei cremes caros pra clarear essa pele da cara, nem pra arrumarem esses seus dentes! O marido da Cléia paga, é? Hum, que maridão! Te disse: se não estiver satisfeita, vai embora, não vou te impedir. Vá viver com seus pais e suas irmãs, cuidar dos filhos delas! Quer dinheiro? Não posso dar! Só quando me aposentar, e olhe lá. Tenho um filho fora da cidade pra sustentar, pra ver se se encaminha na vida. Eu e você... Eu e você já somos velhos, é o que nos resta mesmo: esperar a velhice, e que o Vitor tenha compaixão de nós, considere toda a fortuna que gastei com ele, e não nos interne num asilo em Gramacho, mas sim que nos dê uma vida decente, que dê um jeito em você. Engraçado... foi só se casar comigo que virou o que virou. Claro, como sempre, vai me dizer que a vida de empregada doméstica no Rio era muito mais feliz. Ingrata! Quer voltar a trabalhar? Quer ganhar dinheiro? Pegue um ônibus e vá de reto ao Leblon: quem sabe sua ex-patroa, a de 20 anos atrás, não lhe dê o emprego de volta. Isso se ela te reconhecer! Ingrata! Aposto como se engraçava com aqueles ricassos que frequentavam a casa onde você trabalhava!
Maria rompeu. Do jeito dela. João havia falado sobre esses homens algumas tantas vezes, ela estava acostumada, só aconteceu de perder o sentido ter que se submeter a tais ofensas. Era mulher direita, tinha princípios saudáveis. Levantou-se e rumou a cozinha, lá, numa sacola plástica, ela juntava alguns biscoitos, balas, uma banana, maçã, duas peras, e enchia uma garrafinha de água.
- Olha pra mim, Maria. O que tá fazendo? Falei uma verdade, não é? Era disso que você estava precisando, de umas verdades bem ditas. Duvido se para os engravatados você não era puro amor. Nem precisa ir tão longe: o marido da patroa, aquele velho! Claro, sempre andava de roupa bonita, magrinha, corpo de modelo, levava os filhos dele pra caminhar na praia. Sempre chique. Com que dinheiro, hein? Com que dinheiro, se você dava grande parte a sua família? Diz, Maria, diz.
Maria virou-se e lhe pregou uma bofetada. Outra, agora, com as costas da mão. Mais uma. Ah! João não tolerava ser enfrentado: caminhou a procura de uma pistola que guardara em cima do guarda-roupa e que há anos não mexia. Ao que Maria lhe surge à porta do quarto.
- Você vem com o angu pronto, e minha polenta já está frita! Doei a arma numa daquelas campanhas de desarmamento. Ia me matar? Ia atirar em mim, João, estou lhe perguntando! Tenho certeza que sim. Você e sua mãe são
farinha do mesmo saco. Lembro de quando sua tia Joana empurrou o pobre do Afonso ribanceira a baixo seguindo conselhos da megera. Estou saindo de casa!
Maria caminhava pelo corredor de 20 passos da residência, munida de sua sacolinha, e era seguida por João, que falava e falava.
- Vai mesmo seguir os meus conselhos? Será que ainda consegue lembrar do ônibus que tinha de pegar pra chegar ao Leblon? A vida com os ricassos fedorentos era muito mais gostosa, verdade, Maria? Vai poder andar por toda a Ipanema, conhecer Paris, Afeganistão, sei lá o quê! Você se arrepende de ter recusado o convite pra ir trabalhar pra sua patroa lá na Europa? Eles eram ricos porque tinham televisão! Eu também tenho, também sou rico. – Maria já havia dado as duas voltas da chave na porta e, quando alcançava a maçaneta, João disparou: - Se passar por esta porta, Maria, você estará traindo não só a mim, mas também ao nosso filho.
Maria largou a maçaneta. Virou-se. Deu uns quantos passos e pôs-se diante do marido, ao lado do aparador. Estendeu a mão, abriu uma das gavetas enquanto mirava os olhos de João, alcançou a carteira de motorista recém tirada, e proferiu tais palavras:
- Eu sei sim dirigir, e Vitor não é seu filho!
Thiago Alcebíades