Este texto é uma simples homenagem à banda Alexisonfire, que encerrou suas atividades como grupo recentemente.
Os trechos das cartas e o diálogo ao telefone são traduções livres de trechos das músicas “No Transitory” e “Sharks and Danger”, ambas fazem parte do álbum “Watch Out!” - Distort Entertainment (2004).
Há quem diga que viver é assumir diferentes papéis constantemente, como se a vida se desenrolasse como uma grande peça de teatro e viver não fosse mera encenação. Muitos desejariam que viver fosse fácil assim, ao menos existiria a vantagem de ensaiar as ações antes de se apresentar. Talvez seja muita presunção dizer que é fácil a arte de encenar. Quão difícil deve ser impedir que um personagem não assuma o lugar de quem realmente somos.
Certa vez um homem – sim, alguém como nós – por ter de encenar tantos personagens quase deixou de ser quem realmente foi um dia.
Após varias semanas de insônia castigante aquela fora uma noite em que finalmente havia conseguido a proeza de dormir e ao acordar na manhã de domingo pode ver sobre o tapete da porta uma carta. Assim estava escrito:
“Então isso é o que chamam de outra noite interminável. Tão cansado de acreditar se isso está certo ou errado, eu acho que esta causa está perdida, eu gostaria de apenas conseguir dormir. Sinto-me como um tipo de sombra, apenas um escravo das semanas. Se tudo der errado, se isso é apenas mais uma noite interminável você sabe que ali sempre haverá amanhã e amanhã e amanhã e amanhã...
Atenciosamente, Parte-de-você.”
A perplexidade envolveu os pensamentos daquele homem profundamente. ”Quem escreveu a carta?” “O que significam todas essas palavras?” “Quem será parte-de-você? Uma Mulher?” “Sem chance.” E o domingo se foi como deveria ir: Lentamente. Dormir mais uma noite foi uma conquista e a semana seguiu vitoriosa em noites bem dormidas. No final de semana decidiu responder a carta que havia recebido. Escreveu. Ao terminar deparou-se com um problema, não havia remetente na carta que recebeu, simplesmente fora jogada por baixo da porta (assim imaginava). Decidiu deixar a carta no lado de fora de sua porta, no chão. “Quem sabe alguém realmente espere uma resposta.” – Pensou.
Lá estava outra carta, coincidentemente no domingo seguinte. E a correspondência entre eles prosseguia de forma progressiva, em nenhum momento descobriu quem era Parte-de-você. Em uma das cartas ao desconhecido escreveu:
“Encontro-me em um constante estado de estar prestes a ser feito em pedaços. Então por que eu já não sinto nada? Talvez a ansiedade de viver essa vida esteja me sufocando, como se me sufocasse com arames farpados a ponto de me fazer perder os sentidos, os sentimentos, todas essas coisas e...”
As noites de insônia intercalavam-se nos dias da semana. Desde o inicio efetivo do processo de correspondência as noites de sono rotineiras haviam sido interrompidas, em contrapartida, o fluxo das correspondências crescia constantemente. Acreditava que aquilo realmente estava lhe fazendo bem, nunca, em sua pobre vida, pôde confiar em alguém. Sentia-se muito bem por ter alguém em que pudesse confessar suas inquietações.
Tudo parecia correr bem após alguns meses. Em um sábado qualquer decidiu fazer uma limpeza em seu apartamento. Começando pelo quarto, onde passava a maioria do tempo. Move algumas coisas ali, outras vão para o lixo perto da escrivaninha, algumas pra dentro do armário ou para baixo da cama... Foi quando descobriu um saco muito bem camuflado embaixo da cama. Abriu. Não pode acreditar no que via. Eram as cartas que respondia ao desconhecido. “Mas como, como podiam estar ali? Impossível!” Pensou em contar aquilo para alguém. Mas quem? Era um sujeito solitário, e mesmo que existisse alguém para ouvi-lo, quem acreditaria?
Por não entender e não se conformar com que se passava parou de escrever e já não dormia mais como antes. Ou já não escrevia mais por não conseguir dormir? Não sabia mais. Em uma manhã, fruto de uma noite privilegiada por raras horas de um breve cochilo, viu sobre o tapete outra carta. “Depois de tanto tempo?”
“Agora que todo o seu mundo se foi como se estivesse em chamas, essa noite continua interminável. Você pensa que ainda está em segurança? Parece que tudo deu errado, nós fomos descobertos, mas desta vez não haverá amanhã e amanhã e amanhã e amanhã...
Parte-de-você.”
Decidiu não responder já que tudo não passava de um truque que ainda não sabia como funcionava. Na manhã seguinte lá estava outra carta, a última, que dizia:
“Como a vida que está presa junto a mim eu pego tudo o que eu posso. Você nunca foi alguém para um confronto, mas agora tudo repousa em tuas mãos. Adeus.
Parte-de-você.”
E assim, em vão, ele respondeu:
“Quem estará aqui para dizer quão estúpido eu sou? Quem me protegerá de ser açoitado. Ansiedade me sufoca com arames farpados!”
Ao terminar de escrever conseguiu entender o que se passou durante todo aquele tempo. Tudo fazia sentido agora (era o que acreditava).
Dentro do escritório o som é de muitas pessoas falando nos telefones ao mesmo tempo em que os dedos batem nas teclas. Um telefone toca.
- Psiquiatria St. Catherines, Linha de ajuda . Nancy, falando.
- Estou certo de que isso soará incrivelmente ridículo e eu... Eu não espero que alguém acredite em tudo isso. Eu... Por um tempo venho me correspondendo com a minha sanidade e eu... Eu sinceramente tenho a sensação de estar perdendo o interesse no processo de escrever as cartas. As partes das cartas estão ficando cada vez mais curtas e curtas e eu... A coisa toda me deixa realmente preocupado. Eu só quero demonstrar que grande problema isso é.
- Certo.
- Eu meio que tenho esse... hábito terrível de ficar fazendo perguntas estúpidas a mim mesmo, como: e se... existir em meu corpo um ponto que eu possa tocar e fazer meu coração parar de bater? E se lá fora... existir uma bala certeira que atravesse minha janela e me atinja? Como: e se... e se existir um enorme e inevitável cometa vindo em nossa direção que destruirá a terra e todos nós? Como eu posso me livrar de todas essas perguntas se eu não tenho para quem fazê-las? Quem estará aqui? Por que... Quem estará lá... No hospital? Que irá me dizer que tudo isso é bobagem... É um sonho? Apenas um sonho. Isso não é uma piada. E eu... Eu nunca vou dormir?!
Filipe Lemos.