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sábado, 17 de setembro de 2011

Música do Dia

What You Were - The Drums, por Filipe Lemos.


Um Certo Romance

    Já passa das quatro da tarde e todos os jovens estão reunindo-se em frente ao clube. É domingo, o que mais poderia ser feito? As horas vão se estreitando e a rua parece ter sido tomada por um exército de jovens amantes das superficialidades do que um dia foi os anos 80. Todos com seus clássicos Converses e Reebooks estourados, bottoms, coletes... é um improvisado espetáculo vintage. A maioria dos que estão ali não se importam com as bandas que vão tocar ou se alguma delas um dia realmente fará sucesso. Na verdade o ponto não é esse. O ponto é que não há mais nada autentico e sincero ali. O ponto é que não existe mais romance por ali.
   Todos estão conversando, bebendo e fumando, mas na calçada é possível  notar uma garota que se destaca no meio de toda essa vaidade imatura. Ela se diverte com todo o esforço que aquelas pessoas fazem para demonstrar autenticidade. Balança a cabeça e um sorriso de desdém aparece no canto dos lábios.
    -Sim, é verdade. Eles não conseguem enxergar. E se um de nós dois fossemos lá falar isso pra algum deles levaríamos um soco – um rapaz diz.
    -Se você pudesse ver os que eu conheço concordaria que não existe mais romance por ali. - Ela responde ao rapaz que podia jurar ter lido sua mente.
    -Sabe... É até engraçado você perceber isso em todos eles – o rapaz diz enquanto sorri. – Se você quiser podemos ir lá e falar tudo isso para eles. Contar tudo isso ainda hoje à noite.
    -Eles nunca escutariam. Eles já tem as mentes feitas, atrofiadas. Claro! Está tudo indo muito bem levando a vida desse jeito.
    Ele senta ao lado da garota. Ela pega um cigarro e ele abre sua garrafa de cerveja. Os dois se olham e começam a rir juntos.
    -Não sei o que tanto essa gente vê aqui nesse lugar. Sabe... aqui não tem nada de mais, apenas música. É engraçado, todos pensam que estão nos anos 80, mas toda pose cai quando o celular de um deles toca e a gente ouve o ultimo ringtone da moda.
    -Pois é. Não é preciso ser nenhum Sherlock Holmes pra perceber que existe alguma coisa diferente ali.
    -Não me leve a mal. Posso estar parecendo um chato, mas eu não aguento esses caras que se acham porque tem uma bandinha – ele ri- ou aqueles que se acham no direito de agirem como retardados segurando um taco de sinuca na mão, com aparência de encrenqueiros, como se tivessem ido em cana uma ou duas vezes.
    -Você sabe, “é até engraçado você perceber isso em todos eles – ela diz enquanto sorri. – Se você quiser podemos ir lá e falar tudo isso para eles. Contar tudo isso ainda hoje à noite.”
    Surpreso em ouvir sua fala de alguns minutos atrás sendo repetida ele para de beber sua cerveja. Eles se olham novamente... e caem na gargalhada.
    -Bem, ali estão alguns amigos meus. O que eu posso dizer... Eu já os conheço há muito, muito tempo e provavelmente eles vão passar do limites hoje. Às vezes eles me irritam. – Ela diz.
    -Mas você não precisa se irritar hoje.
    -Não. Não da mesma maneira.
    -Isso. Não da mesma maneira.
    Ela termina o cigarro e arremessa a bituca com o polegar e o dedo médio. Eles se encaram novamente. Ela sorri e encosta a cabeça no ombro do seu mais novo companheiro.

Filipe Lemos.

Mundo de Feras

    Quem visse Diana agora, não a reconheceria. Por ora ativista dos direitos dos animais, quando criança já foi uma exímia assassina a sal armado de sapos.
    - Bicho tonto demais! – debochava.
Calhou de apaixonar-se por Dieguito, um rapaz distante de qualquer afeição pelo reino animal. É que fora mordido por seu poodle de estimação quando era bem pequenininho.
    Estavam de casamento marcado, ao que resolveram jogar na Mega Sena. Diana resolveu. Dieguito era contra qualquer tipo de jogo. Poderia impedí-la, mas arrisco-me a dizer que o rapaz cedeu assim que viu a quantia acumulada: 25 milhões de reais.
    Dali a um mês, a notícia: Diana havia ganhado a bolada e a primeira coisa que fez foi abrir uma conta conjunta com o noivo, fazer planos de doar grande parte ao Instituto Protetor dos Animais e logo comprou uma passagem com destino ao Pantanal. Ida e volta, duas, primeiríssima classe.
    Hospedados numa pousada luxuosa, Dieguito saía arrastado por Diana a fazer um tour pela região. A moça decidiu alugar um barco e navegar por aqueles rios. O motor parou. Possuíam somente uma espingarda e a si mesmos. O moço tinha pavor de água, de mato, inseto e tudo mais que se movesse e não fosse humano.
    Nadaram até a beirada e lá, um filhotinho de jaguatirica se aproximou do casal.
    - Atira nessa coisa, Diana.
   - Claro que não, Dieguito. Ela só nos fará mal se sentir-se ameaçada, acuada. Olha como ela é lindinha. Não quero nem posso atirar. Irá contra minha filosofia de vida e, aliás, o que meus colegas do grupo de proteção aos animais iam dizer? Jamais!
    Ouvia-se folhas sendo pisadas ao que um outro casal lhes fora visitar, um de onças pintadas.
    Diana hesitou tanto a disparar por acreditar bestamente na humanidade dos bichos que acabou sendo atacada e devorada pelo que seria o macho.
Dieguito pulou na água e nadou corajosamente até o barco, saindo ileso, com umas sanguessugas no corpo e uma fortuna que, certamente lhe faria esquecer do incidente e que jamais iria ser doada ao tal instituto, senão direcionada a compra de uma linda cobertura no Leblon.
    Enquanto saboreavam coxas a uma espécie de molho sautée, as onças conversavam:
   - Humanos, insistem em se comparar a nós achando que compartilhamos do mesmo instinto! Chegam a dever o Leão, - o Leão! - vê se pode.


Thiago Alcebíades

Verbo Que Se Fez Carne

     Sou Xangô ave maria sem muita graça pardon monsieur amém Jesuis.
   Sou rosa, bossa nova, brisa e frescor. Sou balão, sou monocromos, sou melodia. Sou fariseu, sou pão e vinho, sou ouro e sou cruz. Sou carne, unha e pedra. Sou Lúcia. Sou imagem.
    Sou Xangô ave maria sem muita graça pardon monsieur amém Jesuis.
   Sou espinhos, rock and roll, ventania e suor. Sou cor, poço sem fundo, sou letra. Sou coroa, sou vinagre, sou Maria Madalena. Sou praga pregada à todo pregador. Sou Don Quixote em busca do La Mancha. Sou Maria da Glória. Sou fogo. Sou tu.
    Sou Xangô ave maria sem muita graça pardon monsieur amém Jesuis.
    Sou espelho.
    E para você, eu não era nada, até ser ouvida.


Ana Esther

terça-feira, 6 de setembro de 2011

Ela Quer

    Para ele seus cigarros, combinados com um bom café, fazem dele um sujeito excepcional. Comporta-se como um típico jovem que acabou de conhecer as exigências da vida adulta: com certa rebeldia, vontade de não envelhecer e insistentemente com os cabelos ainda grandes.
    Ela quer apenas alguém que fale as coisas que precisa ouvir. Nada além. Apenas uma boa conversa. Tem uma bela pose de mulher decidida e faz um grande esforço para ser autêntica, mas tanta originalidade intimida os homens...talvez ela tenha consciência disso, ajuda a manter o idiotas bem longe na maioria das vezes. Quem olha de longe imagina que ela seja um ser inatingível; demais para pessoas com preocupações normais. Nem imaginam que seu maior desejo é encontrar alguém que mereça seu respeito. Que passe os dedos pelos seus cabelos claros e finos enquanto conversam sobre qualquer coisa. Alguém que coloque a mão no seu pescoço enquanto a beija. Um homem que mereça seu respeito.
    Mas ele não sabe de tudo isso. E nunca vai saber. Está sempre preocupado demais em demonstrar intelectualidade com seus cigarros e o café, em parecer um aspirante à rockstar junkie contemporâneo. Tudo isso fica evidente para ela quando observa a maneira como ele estica as pernas sobre a cadeira, na maneira como segura o seu copo ou na posição da sua cabeça quando está caminhando: sempre para cima, com toda a superioridade que é possível atingir.
    Ela não dá a minima pra toda essa bobagem. Ela só quer um homem que mereça seu respeito.

Filipe Lemos

Dois Contos, Um Filme, Um Teatro

    "Estava em tudo e em lugar nenhum, e gritava: NÃO QUERO MAIS SER EU." Assim, subitamente, Maria Lúcia acordara de um sonho que não era sonho, mas sim uma daquelas reflexões em que nós perdemos na distinção do que é real e o que é pensamento.
    Levantou-se, agora observava um espelho e pensava: NÃO QUERO MAIS SER EU, essa afirmação não saia-lhe da cabeça. Por um instante lhe ocorreu a impressão de ter ouvido um resposta: QUAL EU?
    Espantada, prende seu olhar fixamente ao espelho, e num tombo de lucidez, se perde novamente em pensamentos, perdida, sem rumo, sem chão, num plano complexo, complexado. QUAL EU? Existia mais de um  eu em um só ser humano? Não sabia de fato responder a essa questão, mas no momento beirava a dúvida por se dizer que sim.
    E se realmente houvesse de ter que ser sim essa resposta?
  Maria Lúcia aceitou o sim, não quero mais ser eu, esse eu que todo mundo vê, que todo mundo sente, que todos presenciam, mas que no fundo não sou eu.
    -Vontade de viver- era o que soava do espelho; Maria Lúcia queria viver o eu que tem como garantia aproveitar o sublime que a vida nos oferece, para que na hora de sua morte não viesse-lhe a cabeça a ideia de que não tinha vivido. E repetia Maria Lúcia:
    -Quero largar tudo o que faço para fazer o que quero, quero largar tudo o que faço para fazer o que quero; quero fazer tudo o que quero e largar tudo o que faço. Eu quero largar tudo o que faço?
    E nesse exato momento lhe veio a dúvida de qual eu era melhor para se ser, o eu que vivia na comodidade da vida como ela é, ou o eu da vontade de viver, o eu livre sem medo do ridículo; a dúvida era grande, densa, pesava-lhe em suas costas. E vontade de viver gritava por dentro: DEIXE-ME
SER, Maria Lúcia, me acolha em seus braços, dê-me forças para existir, DEIXE-ME SER, Maria Lúcia.
    Ainda com o olhar fixo no espelho, não estava compenetrada de que a vontade de viver era a melhor escolha, mas pensava deliciosamente como seria fazer tudo o que desejava, e deixar de ser esse eu que não era eu. Contudo, vinha a dúvida, esta existia. A dúvida era maior que a vontade de viver, a dúvida era maior, mesmo que de algum modo, a revelia dela lhe tivesse passado pela cabeça a vontade de viver, já era tarde, a comodidade talvez lhe caísse bem, era tarde, apagava a luz, não se via mais o espelho. 
Maria Lúcia era um só eu e dormia.

Camila Rocha

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Morena

    Morena, pele manchada, 45 anos, obesa. É o que Maria via ao encarar o espelho do elevador do apartamento minúsculo onde vivia. A ela seguia o marido. Ele trazia todas as sacolas do supermercado, a carteira com os cartões e dinheiro vivo, a chave do carro, e a satisfação redentora de ser o esposo que nada deixava faltar. Consigo, Maria só levava a saudade de um filho que morava longe e a roupa do corpo, acrescidos, esporadicamente, do dever de pressionar o número 3 que não levava ao terceiro andar, senão o segundo. Apartamento 22. Maria se esquecera, deu meia volta: o marido era quem carregava as chaves da porta: deu-lhe passagem. Arriadas as bolsas, João rumava o quarto; da cozinha, vinte passos eram o bastante para alcançar a recamara; uma suíte bem da arrumadinha. Lá ele se barbearia, tomaria seu banho cronometrado, e era este o tempo que Maria dispunha para fazer uma breve chamada ao único rebento que a deixara a fim de cursar faculdade. Sacou do telefone e discou os números bem depressinha.
    - Almoçou hoje? O que vai jantar?
   Maria queria falar mais. Vitor também. Mas não podia; ela devia fazer as perguntas certas, canalizar as emoções e privar-se de tantas outras para que pudesse ser breve e saber as respostas que lhe acalmariam o coração: todas que afirmassem o bem-estar e sobrevivência do filho.
    É que a saudade era tanta, fazia tão frio por aqueles dias, um tempo feio, de manhã era uma neblina só! Falou mais do que devia. João estava de folga, não houve necessidade de barbear-se. A porta abriu-se e Maria teve de dar um tchau simpático. Mal sabia Vitor pelo que sua mãe estaria prestes a passar.
    Era como se João estivesse escarnecendo-a. Aquelas palavras doíam tanto, mas nem dava para notar aos olhos de quem via e ouvia. Estes, caso notassem, poderiam se perguntar: “- Por que ela se casou com esse crápula?”. Ora, Maria nunca foi burra, só religiosa. João era o homem que toda e qualquer mulher pedira a Deus! Altura mediana, bem peludo, um par de pés que não calçavam menos que 42, um sorriso bonito – recém sarado de uma gengivite -, soldado exemplar do serviço militar, bom filho duma mãe barraqueira de genes fracos, pernas esguias, tímido, sendo o mais preponderante, todavia, o fato de que ele era desejado por metade do bairro. Há 20 anos! No momento, era o homem que lhe deferia desaforos. Ah! Algo dizia que era um erro. Maria foi quem recheou todas aquelas 3 leitoas e fritou mais de uma renca de croquetes no dia do próprio casório: os convidados de mais tarde, além de notarem o cheiro de óleo saturado no cangote da noiva, garantiram a excelência dos canapés. Os anos foram se passando e Maria pôde conhecer o homem com quem se casara: um ignorante-repressor-machista-agressor-de-mulheres que beirava a insanidade; o mesmo que, quando aos seis meses de gestação, lhe tapou boca e nariz, dada a janela aberta. Quase louco porque falava demais, detinha umas concepções próprias bem estapafúrdias, vivia num mundo só seu. Louco por quase ter havido matado o próprio filho ainda no ventre da esposa; fora a vez que, como uma besta, inclinou a cama num repente, e fez rolar Maria contra a parede. Para evitar tais aborrecimentos, Maria teve de aprender, bem como todos ao redor, a conviver com o marido: calou-se.
    Já havia pensado num divórcio, sim, claro! Mas quando Vitor completou seu primeiro mês, Maria converteu-se e, desde então, João jamais a tocou novamente. Havia esperança! No entanto, junta-se a conversão ao silencio da esposa e nem necessidade tinha mesmo João de agredi-la. Además, “a mulher sábia edifica a sua casa”, e nesse intento, Maria resignou-se a trancar-se em sua redoma, seguir os passos e vontades do esposo, e privar-se duma vida. Um dia, já o Plano Real vigorando havia muito, lhe perguntaram quanto custava uma de suas telas; “ – Sessenta cruzeiros. Como é? Ce erre sifrão? ”. Disse e repito: Maria não era burra, só teve de afastar-se de uma realidade impossível; tudo para evitar confusões, oferecer um lar saudável ao filho e salvar o casamento. Estavam condenados a viver juntos! João teria de traí-la para que tivesse motivos justos e reconhecidos por Deus para divorciar-se.
    Não bastou chamá-la inconsequente. João reverberava, expansivo que só, com o telefone numa das mãos:
    - Larga do pé do garoto! Você já sabe que ele está bem, não é nenhum doente mental. Dinheiro? Todo o mês deposito os 400 reais que ele necessita, lhe pago o aluguel, que por sinal é muito mais caro do que o nosso, gás, telefone, internet, luz, e até as calças! Só pra que estude. Pra não dizer que não estou dando apoio. Olha pra mim! Nem o colegial cheguei a completar e ganho muito mais do que a gente da profissão dele. Burro sim, isso ele pode ser, inconsequente não! A isso ele não puxou você. Com que dinheiro você acha que eu vou pagar tudo isso se a conta do nosso telefone, nosso, vier lá nas alturas? Você fala feito uma cacatua! Pra quê essa necessidade infantil de conversar com a sua mãe e as suas irmãs toda semana? Vê se eles ligam pra você. Eles ligam, Maria? Me responde, Maria, ligam? Estou te fazendo uma pergunta! Você é perigosa, perigosa, menina! Sabe me irritar: enquanto falo com você, você não dá nem um pio, nem sequer olha pra mim. Olha pra mim, Maria, olha pra mim! Do que adianta economizar no banho; se lava feito um gato, aí vem pra sala e me faz ligações interurbanas que são um assalto, e solta os cachorros em cima do meu salário. Eu trabalho pra conseguir isso tudo, trabalho feito um cão! Tudo pra você ficar em casa, poder descansar, te dar a vida que toda mulher pede ao Pai Santíssimo. Precisamos economizar! E é só por isso que não te mandei pra um médico tirar toda essa gordura sobrando na barriga, nas pernas, nem paguei cremes caros pra clarear essa pele da cara, nem pra arrumarem esses seus dentes! O marido da Cléia paga, é? Hum, que maridão! Te disse: se não estiver satisfeita, vai embora, não vou te impedir. Vá viver com seus pais e suas irmãs, cuidar dos filhos delas! Quer dinheiro? Não posso dar! Só quando me aposentar, e olhe lá. Tenho um filho fora da cidade pra sustentar, pra ver se se encaminha na vida. Eu e você... Eu e você já somos velhos, é o que nos resta mesmo: esperar a velhice, e que o Vitor tenha compaixão de nós, considere toda a fortuna que gastei com ele, e não nos interne num asilo em Gramacho, mas sim que nos dê uma vida decente, que dê um jeito em você. Engraçado... foi só se casar comigo que virou o que virou. Claro, como sempre, vai me dizer que a vida de empregada doméstica no Rio era muito mais feliz. Ingrata! Quer voltar a trabalhar? Quer ganhar dinheiro? Pegue um ônibus e vá de reto ao Leblon: quem sabe sua ex-patroa, a de 20 anos atrás, não lhe dê o emprego de volta. Isso se ela te reconhecer! Ingrata! Aposto como se engraçava com aqueles ricassos que frequentavam a casa onde você trabalhava!
    Maria rompeu. Do jeito dela. João havia falado sobre esses homens algumas tantas vezes, ela estava acostumada, só aconteceu de perder o sentido ter que se submeter a tais ofensas. Era mulher direita, tinha princípios saudáveis. Levantou-se e rumou a cozinha, lá, numa sacola plástica, ela juntava alguns biscoitos, balas, uma banana, maçã, duas peras, e enchia uma garrafinha de água.
    - Olha pra mim, Maria. O que tá fazendo? Falei uma verdade, não é? Era disso que você estava precisando, de umas verdades bem ditas. Duvido se para os engravatados você não era puro amor. Nem precisa ir tão longe: o marido da patroa, aquele velho! Claro, sempre andava de roupa bonita, magrinha, corpo de modelo, levava os filhos dele pra caminhar na praia. Sempre chique. Com que dinheiro, hein? Com que dinheiro, se você dava grande parte a sua família? Diz, Maria, diz.
    Maria virou-se e lhe pregou uma bofetada. Outra, agora, com as costas da mão. Mais uma. Ah! João não tolerava ser enfrentado: caminhou a procura de uma pistola que guardara em cima do guarda-roupa e que há anos não mexia. Ao que Maria lhe surge à porta do quarto.
    - Você vem com o angu pronto, e minha polenta já está frita! Doei a arma numa daquelas campanhas de desarmamento. Ia me matar? Ia atirar em mim, João, estou lhe perguntando! Tenho certeza que sim. Você e sua mãe são
farinha do mesmo saco. Lembro de quando sua tia Joana empurrou o pobre do Afonso ribanceira a baixo seguindo conselhos da megera. Estou saindo de casa!
    Maria caminhava pelo corredor de 20 passos da residência, munida de sua sacolinha, e era seguida por João, que falava e falava.
    - Vai mesmo seguir os meus conselhos? Será que ainda consegue lembrar do ônibus que tinha de pegar pra chegar ao Leblon? A vida com os ricassos fedorentos era muito mais gostosa, verdade, Maria? Vai poder andar por toda a Ipanema, conhecer Paris, Afeganistão, sei lá o quê! Você se arrepende de ter recusado o convite pra ir trabalhar pra sua patroa lá na Europa? Eles eram ricos porque tinham televisão! Eu também tenho, também sou rico. – Maria já havia dado as duas voltas da chave na porta e, quando alcançava a maçaneta, João disparou: - Se passar por esta porta, Maria, você estará traindo não só a mim, mas também ao nosso filho.
    Maria largou a maçaneta. Virou-se. Deu uns quantos passos e pôs-se diante do marido, ao lado do aparador. Estendeu a mão, abriu uma das gavetas enquanto mirava os olhos de João, alcançou a carteira de motorista recém tirada, e proferiu tais palavras:
    - Eu sei sim dirigir, e Vitor não é seu filho!

Thiago Alcebíades