Em sua sala-de-estar, o homem, sentado em sua poltrona de couro, de frente para o espelho, contempla sua imagem desgastada de ressaca, sem mais a pompa de outrora, rosto manchado de dor, roupa carcomida, imerso em pigarros e bitucas de cigarro. A mão que não segura o fumo tateia o criado-mudo ao lado em busca da pistola, a encontra perto do retrato de sua mulher. Foi a vontade de morrer que trouxe a pistola para próximo do peito e a encostou como se encosta a face de um filho. Uma única munição, bastava para explodir seus miolos no carpete cor de vinho. Viu, no reflexo invertido do espelho, que no relógio de parede o ponteiro corria em sentido anti-horário – tac-tic tac-tic –, suas memórias lhe invadem enquanto sua vida passa diante de seus olhos no sentido inverso ao de se viver.
Viu pelo espelho que lá estava ele, num dia nublado e chuvoso, debruçado sobre o caixão de sua mulher, com seus olhos encharcados de sentimentos verdadeiros; se sufocou no remorso. A defunta mal teve tempo de parir seu filho que carregava no ventre. As velhas carolas se extasiavam com a dor trágica demonstrada pelo marido; isso que é amor, diziam uma para as outras. Tac-tic tac-tic... E lá estava seus olhos arregalados de espanto ao ouvir da boca de uma velhota beata presente no funeral que Agostinho não voltava pro Brasil fazia muito tempo, seu velho companheiro de juventude havia se firmado na Europa e abandonou de sua pátria mãe de uma vez por todas, uma ingratidão que só vendo, esbravejava ela aos sons dos trovões tempestuosos; depois, na boca de um daqueles velhos conhecidos que só reencontramos em dia de cortejo funéreo, o boato da carola se confirmou sem margem às dúvidas. Agostinho já não punha mais os pés nesta terra fazia anos, desde que o viúvo e a defunta haviam se casados, e nem pensava em fazê-lo, se esquecera até dos familiares quanto mais dos amigos; já havia constituído família com uma bela parisiense e era aclamado no circulo social a qual se propunha. Ouviu tudo apavorado enquanto seu demônio interior ria às gargalhadas da astucia que havia usado para ludibriar aquele homem ao crime.
Num inverno rigoroso, ao badalar da meia-noite escura, o corpo de sua mulher jazia estendido na calçada de frente para a casa, inerte e sem vida. Os alcoviteiros fuxicavam e rondavam como abutres que sentem o odor da carniça, enquanto o homem que perdera sua mulher abraçava o corpo cadavérico em pranto copioso. Oficio inquirido e logo as suspeitas se confirmaram: suicídio. Já havia tempo que sua mulher expressava acedia e desgosto com a vida, depressão recorrente às grávidas, mas por vezes fulminantes. Ela fora incapaz de sustentar o peso da existência e, como uma loba que intenta em proteger seus filhotes do sofrimento de serem cruelmente vítimas de outros animais, levou consigo sua prole para a morte; assim se registrou nos autos. Mas a vida não é a certeza de uma sentença judicial. Certeza, alias, é uma única, de que certeza não se há, mas sim uma convenção humana. Somos sempre consequência de um sequência de incertezas que consentem em culminar numa grande não certeza, conhecida nas bocas como Destino. No impeto da fúria agarrou, com uma das mãos, sua mulher pelos cabelos, com a outra, tapou sua boca para que não fosse ouvida e a jogou pela sacada. Congelado, sentiu um arrepio gélido subir pela sua coluna até a nuca quando viu o corpo que carregava o gérmen do adultério cair e se estender na calçada. Já não havia mais dúvidas para ele, a gravidez era fruto da infidelidade da mulher com Agostinho. Cada sentença e cada titubear na fala da mulher era uma afirmação maior do adultério. Quando foi ferozmente inquerida, não conseguia negar o amor pelo velho amigo, mas jurava solenemente nunca mais ter o visto, a despeito das provas existentes no momento – incoerências da falsidade feminina, pensava ele. Já desde o princípio da gravidez ela apresentava apatia no viver. Certamente o malandro, ao saber que ela tinha emprenhado, havia a deixado com uma mão na frente e outra atrás e, agora, restava ao corno cuidar do bastardo.
Regressa ao dia que recebera a notícia: seria pai, mal pôde acreditar – havia de ser um milagre! Foi a felicidade ao saber que uma criança sua estava por vir, as preces e pedidos diários de sua esposa foram atendidos por uma intervenção divina. Invadiu-se dos sonhos e ambições paternas, podia concebê-lo no mais ínfimo detalhe. Seu moleque, um varão, sangue do seu sangue, há de imperar no mundo! Mas foi numa caixa de sapatos velha e carcomida pelas traças, jogada no fundo do armário, sob bugigangas aleatórias, que seu destino se traçou. Nela encontrou cartas de amor de Agostinho remetidas à sua mulher, algumas cria que recentes, de linguagem intima e afetuosa, além fotos da juventude compartilhada pelos dois amantes, souvenires da paixão. Naquela noite de outono de folhas mortas e sonhos rasgados, foi invadido pela dúvida do ser pensante – dúvida que, por vezes, amarga a vida. Nem bem havia sido pai e já perdera seu pirralho para outro homem. Para com os outros era a compostura do homem maduro, mas com ela era a incoerência nas atitudes, o demônio da bebedeira que o tirava de si e, por vezes, o levava a detrair e a pejorar a face de sua esposa com um escarro – capitão de sua dor em barco à deriva sob a sentença do Fado de não mais viver, mas sobreviver. Manteve o bico fechado, mas cada vez mais sentia asco por aquela mulher que rompera o laço de fidelidade e se exaltava com facilidade contra a infeliz. Havia jurado a completude da vida ao seu lado até que a morte os separasse, mas isso quando a própria vida não intenta em nos separar antes. Na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, assim havia de ser nas juras, se não efêmeras.
Em alguns dos anos anteriores da vida, expresso em alguns pulsares reversos dos ponteiros do relógio de parede, foi o casamento de sua amada e deste homem refletido no espelho. Alegria incomensurável e votos de felicidade inesgotáveis feitos pelos que ali estavam para encher seus buchos na cerimônia. Pôde contar com a presença de familiares e de velhos amigos, alguns que já haviam dobrado as diferentes esquinas da vida e se perderam de vista há um bom tempo. Dentre eles estava Agostinho que, apesar de já maduro, ainda mantinha a mocidade nos movimentos e nos modos de falar dos tempos joviais, enquanto tagarelava de suas ambições em países estrangeiros e dos amores conquistados na cidade dos sonhos, Paris. Este rapaz, entre tantos outros, havia sido especial, um companheiro inseparável noutros tempos. Junto da noiva, a defunta adiada, formavam uma amizade invejável. Os três estavam unidos novamente, seus olhos brilhavam pelo reencontro que duraria até o fim daquele dia quando diferentes rumos haviam de tomar. A trindade se completava em cada pequeno detalhe; eram o pão, o vinho e a vontade da sede e da fome. Antes de capitalistas foram militantes de ideais anárquicos, exerceram sua juventude nos extremos. O jovem que não peleja, dizia Agostinho, é doente na sua jovialidade. Foram a chama intensa da juventude que queima aos infiéis heréticos e mais tarde se rende ao paganismo. Eram aquele espírito veraneio que há de se apagar no pôr-do-sol. Juntos deram o primeiro trago na brasa quente do tabaco que invadiu seus pulmõezinhos sacrossantos, uma entre tantas contestações às deidades impostas que são sempre seguidas pela construção de novos templos de adoração, pois deuses nunca se extinguem, apenas trocam de máscaras.
Era evidente que sua mulher nutria afeto por Agostinho, mas jamais imaginara que ali havia mais do que amizade pura e idealista – mas o que é o amor senão a outra face desta mesma moeda? De fato se amaram, mas se abdicaram da paixão física por uma devoção maior de ambos a esse homem refletido no espelho. Ela era a vontade da sede e da fome, desejara a ambos desde o primeiro momento em que os viu, mas para o florescimento da paixão há necessidade da embriagues do vinho, a qual Agostinho era incapaz de fornecer; este era, no entanto, o pão que alimentava seu ser, indispensável à vida.
Antes da trupe, na puberdade, este homem vislumbrou a morte em pessoa, pela primeira vez, numa cama de hospital. Sofria de leucemia e esteve perto dos mundos submersos por vezes; doença a qual o tornou estéril, consequência da quimioterapia que destruíra suas células germinativas, só seria pai se fruto da concepção divida. Foi naquele mesmo hospital que conheceu Agostinho, na cama ao lado, entrevado, com as duas pernas recém engessadas devido a uma molecagem. Seus espíritos inquietos se acalentavam com as divagações jogadas aos ventos, as quais os distraiam daquele fado terrível do aprisionamento naquelas camas de hospital. Foi no calor verão, sob as chamas do dia mais longo do solstício, que conheceu nos braços de sua mulher o amor, mais um entre tantos afagos femininos que como os tantos nunca foram. Fez-se então plural.
Quando ainda pirralho que mal sabia abrir a boca, porém ainda são dos olhos, foi ao sitio de sua avó junto de seus pais prestar condolência à velha que já estava com o pé na cova. Era criança e indiferente a morte, gastou aqueles dias sendo moleque. Em meio ao esplendor da primavera, tocou a aurora de dedos rosados correndo nas pastagens verdejantes, rolava na terra com os cachorros e provava da água do riacho enquanto aguçava seus sentido; até colheu dum pé de maracujá selvagem um dos frutos, mas sequer pensou em violar o gomo para averiguar seu interior, se contentava com a beleza reluzente do exterior e o aroma verde. Colocou-o sobre a mesa da ante-sala da casa-grande e, todo dia ao acordar, contemplava o fruto cor sol nascido. Dias passam e o garoto percebe que seu maracujá perdia sua beleza, se encardia e murchava. Na ingenuidade da infância, perguntou à criada porque a casca do maracujá se enrugara como a casca de sua avó. É o tempo, respondeu a criada, o tempo apodrece tudo. De fato, contra o tempo, não se há remédio. Como a fruta apodrecida que virou adubo para o solo, pouco tempo depois a vida sua avó se esvaiu. Nisto encarou, pela primeira vez, a perenidade da vida sem sequer saber com o que estava lidando.
Aprendeu a caminhar sobre a Terra e a interagir com o ambiente. No leite materno, éter do homem, foi a inocência do mundo, o riso gostoso do bebê e a felicidade da mãe que aconchega sua prole no âmago do peito. Chorou no primeiro raio de luz que invadiu sua retina quando as mãos hábeis da parteira o trouxeram para o mundo exterior. Em sono fetal, se aqueceu e se nutriu no útero de sua mãe. Foi o sopro da vida, a união dos corpos e o gozo da criação. Antes, não mais conjugável, nada.
Assim, o homem voltando a enxergar seu reflexo pavoroso no espelho, arrastou a pistola entre os dentes e num único disparo cessou sua vida. Intentava a não existência, fútil, pois mesmo sem mais estar ainda era fadado a ser. Ele fez o que a vida fez de si, reflexo perpétuo, existência física ou transcendente que nunca se extinguirá enquanto esta folha de papel insistir ou no mundo das memórias persistir.
Lucas Bueno.