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sexta-feira, 27 de maio de 2011

quinta-feira, 26 de maio de 2011

O Amigo

     Um amigo encontrara outro, recém chegado de férias pela Europa e pergunta como foi a viagem:
     - Enquanto estava lá foi tudo bem, Paris, Londres, Barcelona. Mas minha viagem de volta foi uma tristeza. Imagine você que tive a maldita idéia de voltar de navio. Desde criança sonhava em viajar de navio.
     - E daí, você enjoou a bordo?
     - Pior, muito pior. Eu conto: ainda nos cais, quando eu ia subir a escada de bordo, vi uma mulher, uma morena fantástica. Ela me encarou e me lançou um sorrisinho malicioso, mas discreto. Percebi que estava acompanhada, mas naquela confusão do embarque não olhei a cara do homem. Só voltei a encontrar a morena, horas depois, passeando no convés. Ela se aproximou, colocou um papelzinho na minha mão e seguiu em frente sem olhar para trás. Estava escrito: “Camarote 110, 10h00”.
     - Você foi?
     - Claro que fui. Que mulher, meu amigo!Que corpo!Juro que nunca havia tido antes uma noite de amor como aquela!
     - Mas você não disse que ela viajava acompanhada?
     - Sim, mas ela explicou que o marido é viciado em jogo e iria ficar até tarde numa roda de carteado. “Não tem perigo de que ele volte antes das três da madrugada”
     - Então não entendo porque você reclama...
     - Já vai entender. Na tarde do dia seguinte eu estava descansando no convés quando um casal se aproximou. A minha morena e o marido. Ela foi logo me abraçando: “Heitor! Que surpresa! Você neste navio! Mas me deixe te apresentar minha mulher, estamos em lua de mel. Dolores, este é o Heitor, velho amigo de infância, afilhado de meus pais, somos quase irmãos!”
     - Puxa, que constrangimento. E você, como reagiu?
     - Eu estava querendo cair de morto. Gaguejei um “um muito prazer”, inventei uma dor de cabeça e fui para meu camarote, chorar de vergonha e remorso. Chorei horas a fio. Você faz idéia, fazer amor com a esposa de Alberto, meu melhor amigo de infância, um cara que, como ele mesmo disse, é quase um irmão pra mim!
     - Reconheço que deve ser terrível. E como foi o resto da viagem?
     - Ah, foi um tal de fazer amor e chorar, fazer amor e chorar, fazer amor e chorar...

Aldecy Fernandes - Kadiwéu

O Espelho Mágico

     Sempre fui sonhador. Quando criança sonhava em ser policial, seria talvez pelo fato de assistir aqueles filmes de ação, terror, em que um soldado corajoso em sua missão, no final torna-se um herói.
     No entanto, a vida foi passando e o sonho adormeceu. Com as experiências e conhecimentos, renasceu um outro personagem interior, fanático por futebol. Personagem este, que batalhou no gramado de forma esforçada e inexplicável. Sem dúvida, nesses esforços adquiri habilidades, mas não o suficiente para tornar-me um excelente profissional, pois a fila é enorme.
     Mas não desisti, mesmo não alcançando o objetivo. Encontrei um amigo mágico, que me transforma e me leva além das dimensões da realidade. Atualmente, já conformado e realizado, fico perante o “amigo mágico espelho”. Ali eu realizo e sou realizado. Fico admirando o personagem diante de mim, uniformizado com a camisa do meu time favorito. Me emociono com o “rei do gramado”, realizando os mais difíceis dribles. Do outro lado do universo é bem diferente, ouço de forma inexplicável os aplausos da torcida, ouço a voz do técnico, o eco dos gritos da comemoração, vejo sonhando acordado o troféu do meu melhor jogador do mundo.
     Este mundo a mil maravilhas é só meu. Toda vez que ali me encontro, o meu ser se alegra e se realiza. Quando me retiro deste mundo, sou um outro personagem e fico indagando: - “Existem duas almas, ou dois seres em uma só pessoa?”. Creio que sim. Formamos e criamos. Interiormente somos quem queremos que seja. Exteriormente, somos a realidade ou não. Encontramos várias maneiras de descobrir as almas que habitam em nós.
     Descobri-me em ambos. E sou quem eu sou. Há momentos que o jogador profissional no espelho sai em companhia a passear comigo e ensina-me a vencer as circunstâncias que o destino nos traça. Retornando ao mundo do “rei do gramado”, sorrindo e com orgulho pergunto: “Espelho, espelho meu?! Existe alguém melhor que eu?!”

Aldecy Fernandes - Kadiwéu

terça-feira, 24 de maio de 2011

Música do Dia

I Will Posses Your Heart - Death Cab For Cutie, por Filipe Lemos.



quinta-feira, 19 de maio de 2011

As Valiosas Lições de Número 1 e 2 de Hedera Helix

O prazer de ir-se ébrio na bicicleta...
Que sentisse indiviso puro sem Setas
Sem esses recursos escusos manjados!

Vento o tempo ameno o rosto rubro
Alcoólico amnésico o mistério
Revela-se. Renasce o sol o tédio.

Clareia... Paro um trago
Ao escárnio fraterno de minha 
Hera cresce morre cresce Hera.

Patrik Aprígio

Música do Dia

Station To Station - David Bowie, por Patrik Aprígio.

Separação

Depois do falatório
Depois das lágrimas
Depois de milhares de cigarros, de milhares meias-voltas na sala.
Depois de pedir colo
(Criança apavorada)
Depois de mais lágrimas
Depois de flashes ah! O que havia sido...    
Depois, constrangedor silêncio
Macio olor de hidratante seu
Soluço profundo...
Depois de duas garrafas de cachaça
Amaram e se mataram um ao outro.   

Patrik Aprígio

A Mentira

Estavam naquela roda de amigos onde a prosa é longa e cheia de gargalhadas. E como sempre popular, a “mentira” é a que não falta, jazia ali, perambulando aqui e acolá, com muito entusiasmo.
- Ouçam! – disse Pedro. Na fazenda do...
- Ih!!! Responderam todos. Lá vem mentira na certa!
- Deixe-o continuar!  – cochichou Diogo. Se é tão esperto assim, veremos.
- Não isso aconteceu realmente! – exclamou Pedro. Foi um fato real contado pelos...
- Tudo bem! – todos responderam. Continue a sua história.
        - Ok – disse Pedro. Como eu já dizia, na fazendo do meu tataravô não havia água, e isso é uma ruína para uma imensa fazenda. Mas para a inteligência humana não há muros. Como por aquelas bandas do sertão...
- Que bandas!? – perguntou André.
- Ah... não interessa, apenas ouça – disse Pedro - Pois bem....como lá as fazendas são vizinhas, meu tataravô, entrou em um acordo com um fazendeiro vizinho...que não me lembro qual foi o trato...mas isso não interessa. Então como o vizinho fazendeiro, por mãos divinas fora abençoado com um lindo riacho, que cortava suas imensas terras, meu tataravô, com o acordo feito, construiu uma longa e imensa bica em que a água corria livremente, desembocando da terra vizinha e caindo nas terras do meu saudoso tataravô. Com essa criatividade e inteligência obtiveram água, e dizem que até hoje ainda existem água lá na fazenda...
- Mas e a bica? – perguntaram todos. Ainda está lá?
- Pois é... - respondeu Pedro. - Agora vocês entenderão o mistério... Como toda madeira um dia acaba, a bica apodreceu e caiu. Dizem que, como a água já havia acostumada a sua corrente por muito tempo, de forma misteriosa continuou a sua corrente pelo ar... sem cair ao chão.
- Ouçam! Ouçam! – interferiu Diogo - Aconteceu quase o mesmo incidente... Meu avô contava que o seu pai comprara uma fazenda também. Mas com um tanto azar a fazenda estava suja, e por esta razão contrataram um caboclo para limpá-la. O tal indivíduo era meio zanzão, sabe, não girava bem da cabeça. Ele começou a limpar os campos usando uma enorme foice, cortava aqui, cortava ali e assim prosseguia o seu trabalho...
- Nossa!!! – interferiu André. - Com uma enorme foice, ele devia ser um gigante!!!
- Sim! – continuou Diogo. - E olha que justamente onde ele limpava habitava um cavalo selvagem... e como o mato estava tão alto, em um descuido, sem perceber...Plof!!! Cortou o pescoço do pobre animal!!! Em meios aos apuros, despiu-se do cinto e tentou amarrar a cabeça do cavalo ao pescoço, esperançoso no ditado que se dizia por lá: “com o sangue quente, ainda é possível colar”. Imaginem que o atrapalhão se deu bem, isso de fato aconteceu, mas em meios aos apuros a cabeça colou-se errado, ficando com a cabeça para cima!
- Ahahah!!! – riram-se todos.
- Deve ter ficado o máximo – disse André. - Imaginem um cavalo com a boca pra cima?!Um monstro!
- Mas como será que ele pastava? – perguntou Pedro.
- Ah, ele se alimentava das folhas e ramos das árvores! – respondeu Diogo.
- Ah sim! Isso ficou fácil para ele – disse André
- E a água? – perguntou Pedro. Ele talvez esperava a chuva para saciar-se da sede...mas  se não chovesse? Pobre animal!
- Simples! Simples! – determinou Diogo. - Ele saciava a sede através da água da fazenda do seu tataravô... a água que havia acostumada a sua corrente pelo ar!

Aldecy Fernandes - Kadiwéu

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Apenas à Noite

            Ontem à noite ele sonhou com ela. Seus corpos estavam abatidos por mentiras naquela cama. Ela, uma prostituta, jovem e sem sentimentos. Ele, marido de uma mulher que não suporta mais.
        - Não sei como isso foi acontecer, cara. Eu estava apenas vagando pela cidade depois de uma briga com a Megy. De repente, parado no semáforo, eu vi ela. Não consegui pensar muito, apenas a desejei.     
- Você precisa tomar cuidado. Prostitutas são criaturas traiçoeiras.
- Cala essa boca e me dá um cigarro. Eu não amo ela. É apenas sexo, desejo.
- Já chega de whysky, vamos pra casa. Não quero que você comece a chorar por causa de uma puta.
        Sua cabeça está confusa, ele diz que não ama a garota, mas tem certeza de que isso é mentira. Chega em casa. Chegar em casa já é um motivo para uma discussão e ele não aguenta mais isso. Sai e deixa Megy falando sozinha.
        Dirigindo pela cidade chega ao ponto em que a jovem prostituta espera por clientes. Ela entra no carro e logo começam a conversar. O caminho até o motel não é longo. Entram no quarto, tiram as roupas e deitam-se na cama. Agem como se o amanhã não fosse existir.
        O primeiro beijo da noite, aquele gosto tão familiar. Gosto de tristeza. Tristeza por tê-la apenas à noite. Ela o beija com ternura, mas é uma ternura profissional.
- Logo eu estarei sozinho, ainda não sei dizer quando.
        Ela permanece sem emoção. Conclui que não precisa dela, mas sabe que isso é mentira. Ela é perfeita para ele: Segura-o firme enquanto o orgasmo faz seu corpo tremer, beija como se fosse esposa apaixonada, diz o que ele precisa ouvir... mas é apenas à noite.
        Após se recomporem ele paga pelo amor de uma noite. Dirigindo pelo caminho que leva-o para casa pensa que essa será a ultima vez que se deitará com ela, mas sabe que isso é mentira.
        Algumas semanas depois a prostituta recebe uma carta. Fica curiosa. “Como aquele cara descobriu meu endereço?”. Já é noite e ela está se arrumando para ir ao trabalho. Senta-se nua na cama, uma toalha enrolada em sua cabeça abafa um perfume delicado. Seus seios são rijos, brancos, perfeitos. As pernas são longas e bem definidas. Seu rosto configura uma inocência que nunca denunciaria quem ela realmente é.
        Começa a ler a carta. Aquilo não faz sentido. Carta de amor é ocupação de adolescentes imaturos e apaixonados. Está vestindo uma calcinha quando termina de ler a carta, coloca a folha sobre a cama, pega um isqueiro e um cigarro em sua bolsa. Lê mais uma vez a carta e depois queima a folha. Ama aquele homem, como nunca amou ninguém... mas apenas à noite.

Filipe Lemos

Música do Dia

Obstacle 1 - Interpol, por Filipe Lemos.

Carnaval Cotidiano

Lá estava o Nada.
Também estava Maria.
Lá estavam O Nada e Maria.



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...


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E foi na porta entreaberta do apartamento 137 na Barra da Tijuca; entre uma lágrima, uma contração na boca do estômago e o permitir de um gemido, que eles adentraram.
- As crianças chegaram. Hora de ir fazer o jantar.

Ana Esther

sábado, 14 de maio de 2011

Se Soubesse de Mim

Russia, 29 de março de 2009. Ao menos 25 pessoas morrem em decorrência de duas explosões que atingiram o metrô de Moscou. Num dos vagões estavam Rafaela e Estevão recém casados numa cerimônia civil, e o único irmão de Estevão, Gustavo, de 18 anos. Viajavam de lua de mel acompanhados do adolescente que, órfão de pai e mãe, bem como o irmão, logicamente, foi o primeiro a verificar possíveis saídas. Nenhuma foi encontrada. Estavam presos, e só o que lhes restavam era aguardar a morte; uma outra explosão, talvez.
Certo de que morreriam ali, Estevão disparou:
- Se é aqui que nossa vida termina, que seja sexo a última coisa que façamos.
Foi como uma ordem. Rafaela despiu-se e cedeu tudo de seu ser ao marido. Ambos estavam quentes como nunca. Estevão revelou-se um tanto sádico e Rafaela mostrou-se a verdadeira escrava que regozijava a cada tapa, a cada puxão de cabelos.
Os espíritos lascivos e animal arrebataram o casal que passava a experimentar o extremo do prazer e satisfação, sentindo pelo suor, o salgado da morte.
Até então, ainda refreado pela noção de que na sua frente amavam-se seu irmão e sua cunhada, e que ali não deveria ter parte, Gustavo apenas assistia o espetáculo carnal num dos assentos deslocados pelo choque e observava o vagão que mais parecia um jardim de defuntos. Os gritos e berros de prazer dos recém casados mesclavam-se aos gemidos de dor dos poucos que ainda restavam vivos, porém inconscientes, já na passagem para o além-vida.
Num dado instante, de pé e apoiada numa das barras de ferro e refestelada para ser usada ao bel prazer de Estevão, Rafaela levantou o rosto e mirou os olhos do cunhado que já haviam encontrado os seus antes. Gustavo fitava os cabelos louros molhados da cunhada, a maquiagem borrada, os hematomas das agressões sádicas no rosto, os seios escondidos por detrás do tórax do irmão, as pernas finas, porém firmes entrelaçadas a altura da cintura de Estevão e o olhar cálido daquela mulher chamaram sua atenção. Rafaela chorava o desespero contido pelo prazer imoral de ser possuída pelo esposo que só lhe fazia querer mais, mais e mais.
Os monstros estavam a solta, as feras domadas encontravam o caminho da liberdade, a única verdade era a chance e o proibido era pura mentira.
Foi então que o olhar de Rafaela configurou-se num convite irresistível. Imediatamente atraído, Gustavo juntou-se a cunhada e ao irmão. Amam-se os três em meio a sangue, destroços, cadáveres e moribundos.
Tiveram outra chance, outra verdade, outra possibilidade. Eram três pessoas e não mais possuíam laços, senão a obrigação de fazer jus a liberdade que a falta de sentido da vida traz. No entanto, o único momento em que irmãos se tocaram foi quando, prensada numa das paredes, ao lado de um homem certamente morto, Rafaela segurou os cabelos do marido e do cunhado e os trouxe até a boca.
Três línguas e três sabores distintos num momento singular de natureza sobre-humana.
Abateram-lhes o sono. Jaziam no chão suados e exauridos, quando ouviram-se vozes humanas. O socorro tão improvável chegou. Polícias, bombeiros e paramédicos russos os resgataram.
De volta ao Brasil e alguns meses após o ocorrido, o irmão mais novo encontra-se numa consulta a fim de recuperar-se dum possível trauma.
- Ah se soubesse de mim! – disse Gustavo de pé, uma mão na cintura e a outra apoiada na janela do escritório com vistas pro mar.
- Sou seu psicólogo, Gustavo. Se há alguém ao qual você pode confiar os seus mais íntimos segredos, esse alguém sou eu. Nada do que disser aqui sairá de dentro destas paredes.
- É que você não entende! Já amou tanto alguém que... não, não é amor, é necessidade, é fissura, é vontade, é desejo. – disperso, com os olhos um tanto cheio de lágrimas e com as palmas cerradas, o paciente prosseguiu após uma pausa – É sofrimento eterno. Eu não significo nem sequer uma possibilidade, nem isso. Logo eu que faria tudo, que me doaria por inteiro. Sabe como é sentir o gosto da boca de alguém que você venera, mas não pode ter? Isto estava tão certo pra mim, ainda mais depois que soube que eles se casariam... me convenci que jamais aconteceria, que era impossível, mas a vida brincou comigo: me fez provar o gosto do beijo de quem tanto quero uma vez, e agora me priva de saborear aquela boca novamente. Antes tivesse morrido naquela terra gelada! Mas agora vivo, vivo, e o pior: a esperança não se apaga, ela se manteve e cresce com a presença, cresce a cada olhar trocado por acaso, a cada toque inocente. Se a vida ainda perdesse a graça... mas não; o coração que ainda bate naquele busto alimenta a chama que trago dentro de mim. Estou destinado ao misto de dor e alegria, ao passo que me designo o pior dos homens. Como sou vil, baixo.
- Queira entender, Gustavo, o acidente na Rússia, as explosões no metrô... você tinha 18 anos. Dado o seu estilo de vida, seus hábitos e costumes, você não estava nem ao menos preparado para uma relação sexual digamos que, convencional. Já conversamos sobre isso em sessões anteriores, achei que já havíamos solucionado um bom tanto desta questão em especial. As experiências pela qual você passou são de um potencial traumático gigantesco.
- Você tá brincando! Já disse: que o socorro não tivesse chegado e que aquelas horas em que estive com meu irmão e a Rafaela tivessem sido prolongadas e repetidas até que enfim morrêssemos todos e levássemos para o túmulo essa lembrança terrível e tão viciante. Aquelas explosões podem ter sido o que de melhor me aconteceu e acontecerá na vida!
- Por favor, seja claro: do que estamos falando? Não vejo nenhum traço traumático adquirido; não neste episódio em particular, muito pelo contrário, você mesmo se julga vil, mas causa confusão ao dizer e ter dito, em sessões anteriores, que apreciou o ocorrido. Por algum acaso, você pode satisfazer um desejo até então proibido? Você nutria uma paixão por sua cunhada?
- Doutor, Rafaela não significa nada pra mim.
- Pois então do que tanto gostou assim?
- Do cheiro do meu irmão!

Thiago Alcebíades

Ninguém Sabe Seu Nome

Ninguém sabe seu nome, mas observam sua juventude. Ela tem 19 anos. Ela tem tudo o que precisa... para se perder.  Usa um par de botas que costumavam ter a cor branca, mas agora estão amareladas, acompanhando as botas surge o jeans bem justo e rasgado. Um chapéu se encaixa perfeitamente em sua cabeça cobrindo parte de seu longo e loiro cabelo ao passo que a sombra do chapéu esconde seus olhos verdes.
Terminando de abastecer o carro ela caminha para a loja de conveniência para pagar pelo combustível. Os saltos das botas fazem com que seu quadril se mova sensualmente, não é sua intenção, mas age como se fosse. Seu caminhar é lento. Ela não tem pressa. Ela tem tudo que precisa...
Todos aqueles velhos encaram-na e em suas mentes estão de joelhos por ela. Ela tem apenas 19, mas todos se intimidam e a desejam como se tivesse 25. Seu corpo firme e rígido corresponde com a idade que deduzem: “25 anos. Sim senhor... isso.”  
Volta para o carro e olha embaixo do banco para conferir algo. Entra, dá a partida e segue pela U.S. Route 66. A placa de seu carro denuncia de onde vem: Amarillo, Texas. Está indo para El Reno, Oklahoma onde pretende consumar sua vingança. Na semana anterior seu namorado fugiu com uma vadia desconhecida, desesperada ela fez tudo o que podia para descobrir aonde aquele babaca havia se metido, mas a sorte nunca fora sua companheira. Estava deitada em seu quarto quando recebeu um telefonema, era a mãe de seu namorado. A velha dizia que havia achado nas coisas do filho alguns panfletos de motéis de beira de estrada e alguns eram de El Reno. O desgraçado já planejava aquilo por um bom tempo. Fugir e aproveitar-se das sabedorias sexuais de uma vadia. Maldito!
Um motel chamou atenção, era o Budget Inn Motel. Em uma de suas viagens de casal passaram por ele e dormiram por lá uma noite. Ela transou a primeira vez ali, com aquele bastardo. Era virgem e achava que amava aquele moleque! Seu instinto dizia para começar por ali, talvez achasse alguma coisa lá... Quem sabe? Homens são tarados, curtem essas bizarrices de comer uma amante onde já levaram outras.
Dirige durante horas, a estrada é invencível. Só consegue pensar em como fará para que aquele cara pague pelo que fez. Chega ao motel, já é noite. Estaciona o carro e pega sua 9 mm embaixo do banco. Prende a arma improvisadamente nas costas por baixo do cinto e estica sua regata preta para esconder a arma.
Entra pela recepção e descreve a aparência de seu jovem namorado para o rapaz que está com os pés em cima do balcão lendo uma edição antiga da revista MAD. Ele confirma a presença do bastardo e entrega uma chave reserva do quarto em que ele está. Uma situação como essa era normal, na mente do recepcionista ela era apenas outra componente da festinha que rolava no quarto. Só conseguia prestar atenção naqueles olhos verdes por baixo do chapéu, ficou tão desorientado que não notou que ela carrega uma arma na cintura.
A porta do quarto se abre tão silenciosamente que os amantes não percebem que ela está lá. Ele está por cima, domando aquela ninfa que o recebe com as pernas abertas, pernas que em alguns momentos se agarram nas costas dele e depois caem como mortas. Ela observa o coito, espera o termino daquilo tudo sem pressa encostada na parede segurando a fivela de seu cinto negro. Por fim ele explode num gozo mortal, não consegue se mexer depois daquele arrebatamento de sentidos e fica deitado por cima do corpo de sua amante. Subitamente ele recebe um chute na costela que faz com que seu corpo mole se estenda pelo chão. A garota é puxada pelo cabelo e jogada no outro canto do quarto. O acerto é com ele.
Arrastando-se ele consegue se sentar encostado na parede vermelha, ela se dirige até ele e pressiona a sola de sua bota sobre o peito dele, observa-o sem dizer coisa alguma e mais um chute, agora no rosto. Procura por um travesseiro e o posiciona no peito do ex-namorado. Agora um joelho está esmagando as bolas enquanto ela segura o travesseiro com uma mão e com a outra ela saca sua 9 mm, rapidamente engatilha e volta a segurar o travesseiro contra o peito daquele maldito. Encosta a arma no travesseiro que está no peito do ex e dois tiros abafados são despejados ligeiramente do pente. Feito.
Manda a garota se vestir e segui-la até o carro. Passam pela janela e andam por trás dos quartos para chegar até o carro. O carro segue pela noite o caminho de volta, sentido Amarrillo, mas não ficarão por lá. Nenhuma palavra foi dita durante toda a viagem. A amante não chorava a morte de seu parceiro, apenas olhava a paisagem escura com a cabeça encostada no banco. Já é manha quando fazem uma parada no Cattleman’s Café, na Amarillo Boulevard. Sentam-se em uma mesa para dois - a garota ainda não diz nada. A garçonete se aproxima para atendê-las. Pedem apenas um café bem preto para começar.
Os olhos verdes e baixos encaram a garota por baixo do chapéu enquanto o vapor do café deixa a ponta do chapéu úmida. A pele branca daquela garota, o cabelo negro e liso, os olhos escuros como a morte despertaram algo desconhecido dentro de si, talvez o café tenha ajudado. Encostou-se relaxadamente na cadeira e disse:
- Diabos, garota! Como você é linda. Meu nome é Stacy. E você, como se chama?

Filipe Lemos

Música do Dia

Folly & The Hunter - Residents, por Matheus Torres.



Rosa-Come-Unhas

     -Um absurdo! – Dona Mariquinha dava seu palpite na reunião de condomínio do edifício Rômulo Santana.
     Foi um marco na história do condomínio: o síndico e vinte e três moradores dos trinta apartamentos do Romosanta – como o edifício era carinhosamente chamado – estavam ali reunidos para mostrar solidariedade com a Rosinha – a doce e meiga Rosinha! -, que estava passando por pequenos problemas. Apareceram pichações anônimas no muro do prédio com dizeres ofensivos. “A ROSINHA DO 27 RÓI AS UNHAS DOS PÉS”, “ROSA-COME-UNHAS” e outras frases estampadas em letras garrafais no muro do Romosanta compunham o novo cenário do, até então, harmonioso condomínio da Rua das Figueiras 1780.
    De fato, todos naquela reunião estavam horrorizados. Que calúnia! Nunca que a Rosinha – a santa Rosinha – ia fazer uma “porquisse” dessas! Todos estavam defendendo a imaculada Rosinha, mas a mesma não estava na reunião ainda.
    - É uma moça tão boa! Nunca fez mal a ninguém... – disse dona Jurema, que cada semana denunciava algum vizinho à polícia por barulho, peripécias dos filhos dos condôminos, ou pelo cachorro do seu Arnaldo, que insiste em usar a porta da dona Juju (ironicamente chamada) de banheiro. Mas nunca, nunquinha, tinha denunciado a dócil Rosinha.
     -É uma moça de respeito! Essas pichações são injustas! – disse Benedito, o Benê, ex-síndico do Rômulo Santana. Deixou de ser síndico, pois deve ter assediado todas as condôminas que possuem bustos grandes e um rostinho bonito. Tentara muitas vezes “alguma coisa” com a respeitosa Rosinha, mas dela ele não ganhou nada.
     -Vamos achar quem pichou o prédio e ligar para a polícia! Ela sempre foi uma das melhores moradoras! Sempre pagou as mensalidades em dia e nunca foi motivo de problemas! – falava o síndico Victório Brandão, que já fora candidato a vereador, gostava de falar em público – Devemos todos mostrar nosso apoio a essa cidadã que está sofrendo nas mãos dos vândalos dessa cidade que se assemelha muito com Sodoma e Gomo...
    No meio desse discurso político, Rosinha adentrou a sala de reuniões. Cara fechada, não olhava para nenhum vizinho. Todos a olhavam em silêncio. Tomou o poder da palavra e tirou do bolso um texto escrito à mão para ler em voz alta. Tinha a caligrafia perfeita, a adorável Rosinha! Começou seu discurso:
     -Eu, de fato, costumo roer minhas unhas dos pés... Não precisou mais nenhuma palavra. Rosinha não tinha mais nenhuma reputação – a nojenta Rosa-Come-Unhas. Daquele dia em diante, qualquer um que olhava para Rosinha – a asquerosa Rosinha – imaginava a cena grotesca daquela mulher delicada consumindo suas próprias unhas dos membros posteriores. Jurema passou a denunciá-la constantemente, por motivos incompreensíveis; Benê nunca mais falou com ela; e todos os condôminos passaram a evitar a temível moradora do vinte e sete, professora de idiomas, sem filhos e solteira – talvez para a vida inteira.
     E foi assim que o condomínio Rômulo Santana, edifício situado na Rua das Figueiras 1780, deixou de ser chamado de Romosanta e passou a ser conhecido, carinhosamente, como Prédio da Rosa-Come-Unhas.

Gabriel Dangió